.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

25/01/2019

a tenda II


ricardo paula



e a tenda enche-se de gente emocionada. olhos no ar. e os corpos rodopiam num desafio constante à gravidade – elas voam de baloiço em baloiço. sem rede. e um sorriso. e outro. e entre as pernas afogueadas insinua-se o calor de um humano escuro como breu – o amor ao circo permite tudo – e o chicote estala enquanto os leões rosnam em cio comprado numa loja de bugigangas orientais – as leoas retocam os lábios. prometendo-lhes afagos e segredos que os tornam reis numa selva de manjericão – e o mágico faz desaparecer tudo quanto seja amor. e da cartola sai mais uma ereção para o público gritar em delírio: sexo. sexo. sexo – as palmas já não bastam – é o vício – é o jogo das cadeiras a circular e corre o leão. segue-se o elefante. atrás. o jacaré. depois o hipopótamo e a formiga sem lugar para se sentar – é o circo da vida – e o que é fogo que não arde é agora uma labareda – a estrada da noite é longa e o desatino torna-se alegria dentro de uma caixa de viagra – o circo sempre em movimento. de cidade em cidade. de alma em alma. de controle em controle ninguém quer parar a ilusão – brevemente numa casa de ejaculações perto de si 



22/01/2019

deambulações noturnas XXXVI


pintura - picasso



se fosse um escritor com chancela. as passadeiras do chão nunca se teriam enrodilhado – uma metáfora vazia para não dizer nada – e também a quem interessa o que digo?


20/01/2019

um domingo de 2019


pintura - jean-michel folon



engrenagens e relojoaria


a escrita é como uma oficina de reparações de relógios – é assim. quando no interior do espaço intracraniano os devaneios entram em delírio. amarro neles. todos. e atiro-os para o papel – o alívio é instantâneo. o transtorno neurológico volta ao sossego e o artista retoma a forma humanizada – uma casa mágica. onde o papel é a relojoaria e o escriba o relojoeiro [o contrário também] – o relojoeiro. é o homem dos restauros geralmente complicados. pressupostamente sábio. amigo de atena. solitário. olhos curtos e precisos. amarrado a tudo quanto seja silencioso e a ferramentas minúsculas – tudo ao seu redor é pequenino: parafusinhos. alicatezinhos. rodinhas. cordinhas. pincinhas. um folinho para soprar poeirinhas e uma série de lupinhas para aumentar mil vezes a imperfeição – sou então relógio e relojoeiro ao mesmo tempo. quer isto dizer. dou corda e gasto-a – muitas vezes não se trata de nada grave. troca-se a pilha. duas abanadelas e tudo volta à hora certa – e digo para mim mesmo: está como novo sr. sampaio. tens aqui uma máquina para a vida – hoje já não se fazem coisas destas – um sorriso que dobra a esquina da rua e sigo para o mundo com a convicção de que as palavras são pontuais. rigorosas. extremosas e bonitas. tudo a bater certo com greenwich – gosto de pontualidade. um homem nunca deve chegar atrasado a nada. muito menos nas palavras que falam sobre ele – não tolero aqueles sujeitinhos que se esquecem de ver as horas. e depois. com cara de pau. têm a lata de dizer que não é por mal. é feitio. são assim – não acredito em homens sem relógio – mas por vezes acontece o inesperado. volto à relojoaria e. mal cruzo os olhos com o relojoeiro. percebo logo que a coisa é grave – a máquina encostada ao ouvido. ar sombrio. carregado de preocupação. mexendo para lá e para cá. como se estivesse a tentar reanimá-la de uma paragem cardíaca – mais uma abanadela. revira e volta a revirar com o semblante em agonia acelerada. os batimentos estão por um fio – o terror estampado na face do relojoeiro – nem necessita falar. percebo que a situação é grave. irreversível. com os olhos na lupinha diz-me: vamos ver o que se pode fazer sr. sampaio. mas pelos sintomas não lhe descortino grande futuro – isto está mesmo muito mau – deixe ficar para ver o que posso fazer. passe daqui a três ou quatro dias e já lhe poderei adiantar alguma coisa – esperemos que tudo corra bem – saio da relojoaria com a certeza de que o perdi para sempre – não haverá mais tic tac – esta crónica chegou ao fim. morta

[e assim foi preenchido cada dia da minha semana. crónicas sem rede. escrever e postar no mesmo dia – foi um teste árduo e complicado – confesso que gosto muito mais de deixar as palavras a alourarem em lume brando. ficam mais condimentadas e as papilas gustativas excitam-se com mais facilidade – bem sei que cada leitor sentirá um sabor diferente. mas creiam. tudo foi ao lume cuidadosamente e sempre a pensar em vocês – tenham uma boa semana]



19/01/2019

um sábado de 2019



pintura - victor brauner


o mundo numa cabeça de fósforo

 

terra. florestas. desertos. cidades e casas rodeadas de penúria – há igrejas. sanatórios. casebres e albergues que não passam de casas de putas – há sangue. vespas. sanguessugas e ceifeiras vestidas de preto a rebolar em campos que já foram de trigo – há raiva. vómito. dor e comboios que só param no inferno onde tudo não passa de agonia – e há dentro de mim uma vontade enorme de meter a terra num foguetão e mandar tudo para um caralho que foda todas as estrelas do céu – e tudo na vida não passa de uma prosa presa a uma cabeça de fósforo que arde como ardem as desordens dentro do subconsciente – se tivesse um pouco de sorte neste azar de quem já nada pode alterar nas palavras que escreveu. e se o meu corpo em vez de se decompor em estrume se transformasse em abraços quentes. quem sabe. a primavera acontecia mesmo em tempo de inverno. numa ambição que vai da terra até ao céu. e lá do alto. o que vejo é saudade a cair dos bolsos. como se fossem gaivotas e soubessem que a vida voa sempre em direção às janelas abertas



18/01/2019

uma sexta-feira de 2019



escultura - ron muek


imperativo categórico


com a idade fui-me aproximando da teoria moral de kant. as regras morais são agora. mais do que nunca. imperativos categóricos – incluí nestas regras morais a mentira – confesso que. ultimamente. não consigo suportar gente mentirosa – na maior parte das vezes tudo começa com um sorriso impostor. não satisfeitos iniciam o carregamento da burra com elogios descabidos. mentirosos. burlões – na parte final. como o discurso não é sustentado pela verdade. tudo termina numa mão cheia de desculpas esfarrapadas – se respeitassem a doutrina de kant saberiam que agir com moralidade significa agir de acordo com o dever. mesmo que as consequências não sejam favoráveis – e nem era preciso muito para fazer cumprir esta doutrina: 1º. não rir sem propósito quando nos encontramos com alguém que não apreciamos. não é obrigatório receber ninguém com um sorriso de orelha a orelha – 2º. não elogiar sem uma qualidade ou virtude objetiva. o elogio é sempre uma resposta excecional para um comportamento extraordinário – 3º. por último. não se despeçam com festas e mordomias excessivas emolduradas em promessas que todos sabem que não se vão cumprir. basta um até sempre e ficavam livres do constrangimento de uma desculpa pindérica – a mentira só existe para enganar. para magoar. atraiçoar. iludir ou mesmo burlar – quem mente não tem ética e age sempre com base em algum interesse – a mentira foi inventada para ferir infindavelmente por não ter reparação – quando perdes um[a] amigo[a] por uma ilusão mentirosa é fácil reparar o estrago. basta procurar uma outra razão para te iludires e o que está para trás logo esquece – quando és burlado chamas uns quantos impropérios ao burlão e interrogas-te como foste capaz de cair naquela palermice. aprendes com o erro. deitas tudo para trás das costas e juras que não voltarás a cair noutra esparrela – quando és atraiçoado a dor ao princípio pode ser cruel. mas aos poucos. percebes que a cura depende apenas de ti e partes ao encontro de um novo sentido para a vida – a mentira é diferente. quando te mentem é para sempre. não consegues perdoar porque nunca a conseguiste compreender e interrogas-te o que fizeste para a merecer – na maior parte das vezes nada fizeste para além de falares com frontalidade. com verdade. e às vezes. sim. também com crueldade – detesto a mentira. detesto sorrisos mentirosos e ainda mais as mentiras trajadas com pele de cordeiro – vivemos tempos novos. as mentiras e as aldrabices são feitas com um simples batimento de uma tecla do teclado – os perigos ainda estão em fase de enumeração e catalogação. mas. já é certo. que há gente contaminada. mais ou menos perigosa. alimentando dentro de si novas estirpes de psicose. onde a mentira deixou de pertencer exclusivamente ao roto. trajou-se de um chique delirante e passou a uma verdade absoluta lunática – nem o mentiroso sabe que está a mentir. contaminado pelo vírus da excentricidade passou a ver o mundo todo de pernas para o ar. o único que está de pé é ele. perdeu o completo contacto com a realidade – são tempos difíceis. onde cada um quer exibir nele o melhor dos outros: o melhor marido. o melhor ego. o melhor sorriso. o melhor passado. o melhor pensamento. o melhor amigo. o melhor par de sapatos. o melhor filho. e tudo o que pode ser feito com um simples bater de uma tecla. e o que não consegue ter a teclar é porque entendeu ser o melhor para a tia. para o cão. para o gato. para o padre ou para o sacristão – estou farto de gente mentirosa. de gananciosos. de burlões – é altura de começar a “agir apenas segundo uma regra pela qual possas ao mesmo tempo querer que se torne uma lei universal” – não contem com a minha boca fechada. continuarei a falar como sempre. com a minha verdade. custasse ela o que custasse



17/01/2019

uma quinta-feira de 2019



pintura - dyanne



o autocarro só passa uma vez à nossa porta

 

depois de uma determinada idade perder o que quer que seja é um aborrecimento e. no meu entender. deve sempre merecer a nossa melhor atenção e reflexão. se essa perda se tratar de pessoas que prezamos – podemos perder a carteira por descuido. o cartão de crédito por tontice. o carro gamado por um meliante sem escrúpulos ou a pantufa devorada pela boca do nosso fiel amigo – todas estas coisas se podem recuperar ou em último recurso redimensionar para baixo os danos da perda – é hábito dizer que só a morte não tem solução. e é verdade – mas há uma coisa que já não dá mais para perder. falo de amigos ou mesmo apenas de pessoas que estimávamos e que. com as suas diferenças. nos ajudavam a manter a nossa saúde mental e principalmente. iluminavam emocionalmente a nossa passagem terrena – o que seria de nós sem amigos – mas já todos perdemos um amigo. creio que são poucos aqueles que nunca tiveram uma desilusão com alguém que estimavam – eu não sou diferente. já perdi amigos e confesso-vos que não foi nada fácil – mas são estas perdas que nos fazem valorizar aquelas que resistem ao tempo. com diferenças. com brigas e com a nossa constante adaptação ao tempo que gastamos à inevitabilidade do envelhecimento – como diz o ditado popular os amigos veem-se no hospital e na cadeia – por mais teorias. juras. abraços. boas palavras e sorrisos de orelha a orelha só saberemos o valor de uma amizade depois de testada – é nos momentos menos bons que ficamos a saber quem realmente está connosco e dá o corpo às balas – e não raramente temos surpresas. os que pensávamos estarem connosco são os primeiros a abandonar o barco. e quando olhamos para o lado somos surpreendidos com a presença de alguém que não imaginávamos ser possível estar ao nosso lado a segurar as pontas – o que acontece é que as amizades mais antigas. fruto dos anos. acabam por cair numa rotina ilusória – isto é. fruto de um conhecimento adquirido ao longo do tempo acabamos por nos desviar daquilo que somos para agradar exclusivamente aos nossos amigos – os amigos fazem o mesmo e tudo parece perfeito até que um dia a faísca acontece. a combustão lenta mina a tolerância e a lealdade. os laços desfazem-se e quando ninguém espera dá-se a explosão – lá se foram dezenas de anos desfeitos em segundos – no passado raramente demonstrava interesse por conquistar novas amizades. achava sempre que já tinha amigos suficientes – com o tempo passei a dar mais oportunidades às amizades recentes. surgem numa fase da vida em que estamos mais sábios e mais competentes para ver além do papel embrulho – geralmente. estas novas amizades. acontecem já como fruto de uma comunhão de interesses. se gostamos de futebol fazemos esse novo amigo num jogo de casados e solteiros. se gostamos de pesca fazemos o amigo a vender o seu espólio na lota e por aí adiante – são momentos fantásticos. o mundo parece-nos perfeito e estamos-lhe gratos pela sua imprevisibilidade – com milhões de hipóteses para o desencontro e contra todas as estatísticas a equação deu erro e o encontro aconteceu quando menos esperávamos – e dizemos os dois: olha a sorte que tivemos. quem havia de dizer que nos haveríamos de conhecer neste lugar – e é assim mesmo. quem haveria de dizer. ninguém. mas aconteceu e estamos todos muito felizes por habitar o planeta terra – olhamos em frente e passamos a acreditar no destino: estava escrito nas estrelas. ainda bem que assim foi. estamos agradecidos por fazerem parte da nossa vida – finalmente podemos arrasar com a teoria de que é necessário andarmos todos na escola para construir um relacionamento de amigo verdadeiro baseado no respeito mútuo. na verdade. na cumplicidade e na lealdade – mas com a idade. e apesar de toda a sapiência adquirida ao longo da vida. perder uma amizade levanta outros problemas: a vida começa a escassear e pode cair por terra aquela velha máxima de que o tempo coloca tudo no seu lugar – pode muito bem não colocar já coisa nenhuma e não coloca só por falta de tempo. não coloca também por falta de vontade ou paciência. já não há força e muito menos a ingenuidade e perseverança da juventude – o corpo está cansado e a mente já não tem flexibilidade ou disposição para grandes reflexões sobre o que está certo ou errado. o que pode ser desculpado e o que não tem desculpa – as atenuantes para o erro. ou para o perdão cristão. já não são levados em conta. não porque não haja atenuantes ou por não querermos perdoar e desejarmos até um mal maior em forma de pena compensatória. não. o problema não é esse. é bem mais simples do que se possa imaginar – em boa verdade. há apenas o desejo de uma nova vida. um recomeço. os limites para a tolerância alteram-se e já não há pachorra para aceitar mais do mesmo. oferecer a outra face está definitivamente fora de hipótese e que se lixe o caminho para o céu – que se dane o paraíso. o preço da entrada é demasiado alto – dobramos a curva da tolerância. deixamos de a ver. e não fazemos conta de voltar para trás para a recuperar – já não dá. estamos esgotados e sem forças para compreender os outros – chegou a hora de nos compreenderem. e principalmente. de nos aceitarmos exatamente como somos – já não dá para fazer fretes – recordo aqui uma frase de clarice lispector que no meu entender resume bem a perigosidade de conceder… “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” – já entrei naquele estágio da vida em que pago para não ter aborrecimentos e. sobretudo. não ter que aturar cromos – nem tudo na idade é mau. nestas coisas de gerenciar relações a idade é um posto e quando deixamos para trás qualquer coisa já não há volta a dar – se no passado era um problema que nos tirava o sono. ficávamos tristes. os dias confundiam-se com a noite. a comida não passava. os cigarros acumulavam-se na boca e a vontade de dar dois murros no culpado era substituída por um murro numa porta e os dedos é que pagavam com um inchaço durante oito dias – ficávamos para morrer. e não havia forma de acabar com a depressão. azedávamos. sentíamo-nos injustiçados. protestávamos com o mundo e connosco e só o tempo nos lavava a alma – agora. maduro. mas ainda sem estar a cair de podre. percebo que a vida é assim mesmo. todos diferentes por dentro e todos iguais por fora. é feita de perdas e ganhos. de alegrias e dissabores. de gratidão e ingratidão e de opções que não podemos nem devemos questionar – cada um sabe o que é melhor para si – as amizades podem ser conquistadas. mas nunca compradas – estes são apenas contratempos que nos obrigam a reajustar a nossa entrega aos que queremos e gostamos de ter por perto – fecha-se uma porta. abre-se outra. redireciona-se o tempo para mais de mil coisas que ainda temos por fazer. a vida pode ser inventada todos os dias. há tanta coisa nova nos espera – por mais que nos custe. estou certo. que o melhor para todos é a arquivação das comoções. boas e más na pasta dos diversos – já não compensa a trabalheira de refazer uma relação de amizade ou apenas de cordialidade – assim faço. sempre que uma pretensa amizade me aborrece. não há papas na língua. bato a porta e sigo em frente que o santo tem pressa – confesso. nem quero saber se tenho muita ou pouca razão. sei que tenho a suficiente para não me aborrecer ou maltratar-me – o importante mesmo sou eu e aqueles que caminham comigo – o autocarro só passa uma única vez na vida. se o perdes já não há volta a dar – podes mudar de local e apanhar outro. mas já não leva o mesmo destino nem os mesmos passageiros – uma coisa eu sei. tudo o que fazemos tem um preço na vida – eu pago o meu preço. a diferença em relação ao que fui em tempos idos é que agora prefiro sorrir para o futuro em vez de ficar preso ao passado

 


16/01/2019

uma quarta-feira de 2019



imagem google



escrevo porque voo

 

escrevo. escrevo como se as palavras fossem um avião. como se eu fosse um avião sentado numa cadeira que voa como os aviões. como se tudo em mim não fosse mais do que uma massa de ar que sustenta todos os aviões do mundo. que são parentes das gaivotas que voam como voam os aviões – gosto de voar com as palavras. voo em volta das recordações. em volta das cadeiras. das fotos. dos amigos e dos que não o são. dos dias soalheiros e das noites geladas. da solidão e das histórias que quero contar e mais umas quantas coisas que estão no ar e que não sei se são aviões ou ilusões. ou magia. ou coisas que tenho dentro da cabeça e que não são capazes de se ligar à terra – e as mãos a escrever noutro mundo onde vivo desde que nasci.  para que as palavras se formem como se formaram as crianças do meu passado. nas ruas. atrás das bolas. dos amigos. e das caricas que com “triclas” correm as beiras dos passeios num furor de alegria – éramos dezenas. éramos tantos como são hoje as palavras que escrevo. tantos como os piões. como abraços e juras de que assim seria para sempre – e os aviões a rasgar os céus como se pudessem pousar no nosso campo de futebol. bonitos. a carregar sonhos de um lado para o outro. em bicos de pés. e a criançada de braços abertos subia ao céu e ali ficava até a noite chegar – escrevo. escrevo porque quem escreve sonha e sonhar é voar. não importa o que és desde que saibas sonhar e tenhas um par de asas para voar. uma história para contar ou até um abraço para dar – estendo-me pela memória de braços abertos. a fingir que sou um avião e quando não sou avião sou gaivota – [como se as gaivotas voassem com braços] e grito pelo cosmo que não é mais do que o meu espaço encefálico carregado de neurónios que querem voar – só o chão da terra corre ao contrário dos aviões. a fugir para trás. com lamentos de nunca ter aprendido a voar – há um universo das coisas que não voam. não sonham e não medram – tenho pavor deste universo. das suas correntes e das palavras que ofendem por nada saberem sobre o que voa – quando não estou a querer voar não escrevo. levanto os pés na cadeira. meto os joelhos debaixo do queixo e encutinho-me ao redor dos braços. fecho os olhos e adormeço amarrado a um pesadelo que me leve para o fundo do mar – e morro afogado nos meus sonhos – e mesmo nas mais sombrias profundezas do mar eu sonho. sonho sempre que voo



15/01/2019

uma terça-feira de 2019



jean paul laurens


o sínodo do cadáver

 

sei que um dia tudo o que escrevo neste equilíbrio desequilibrado tombará para dentro do meu peito – sei também que chegará o dia em que a balança pesará tudo quanto escrevi. o que ficou nas entrelinhas e até o que pensei escrever e nunca escrevi – será o tempo da justiça terrena – os homens. todos. os que me ocuparam o corpo e os que passaram a meu lado. reunir-se-ão no sínodo do cadáver para interpretar o papel de deus – assim será e eu nada poderei fazer. esta é a sua génese – o passado nunca desaparece nem será esquecido às mãos dos puros – sei que não será um julgamento justo. mas quem se importará? – eles sabem quem eu sou. mas não sabem como cresci. sabem o que escrevi. mas não sabem o peso de cada palavra. sabem o que fiz. mas não sabem a razão porque o fiz – o perdão à mão do morto – quem julga define-se – haverá sempre tantas sentenças quantos homens sobre a terra – o mundo permanece sempre belo para quem ainda vive – sei o que sou. o que não sou. e o que gostaria de ser e. que. por obra do diabo. ou coisa que o valha. não fui capaz de ser – levarão então toda a minha palavra do início ao fim. da forca à guilhotina. do credo ao ato de contrição. e o ponteiro da balança oscilará de um lado para o outro procurando os contrapesos para a ressurreição: uma palavra bonita ali. um gesto acolá. uma esmola àquele. um sorriso. um abracinho. e umas quantas futilidades que não servem para nada – querem-me enterrar sem pecado – e a balança sem saber para que lado cair – todo o mundo vai querer equilibrar o desequilíbrio de uma vida que não lhes pertenceu. foi minha. só minha. e de minha escolha e responsabilidade – finalmente o fogo do crematório fará a sua justiça salomónica. sem venda. sem espada. e sem balança: o corpo ao pó voltará – só eu conheço o caminho percorrido. só eu serei capaz de me castigar. mais ninguém – os sapatos estão no armário para quem se quiser fazer ao caminho – sigam felizes neste dia de marte. neste dia em que o deus da guerra reclama o seu tributo. entre cinzas e combates perdidos

 


14/01/2019

uma segunda-feira de 2019



marianna gartner


  

sessenta velas e outras galáxias

 

três da manhã e eu às voltas com o mundo – o mundo é mais do que carrego nesta tristeza que me consome – o mundo é redondo. azul. com mar. sol e sal e ainda outras galáxias que desconheço – é infinitamente grande para que alguém como eu o queira ferir com este corpo perdido num solstício de inverno – aqui estou à procura das palavras. as horas batem dentro de mim e o sol escondido atrás de uma lâmpada de sessenta velas – estou triste por dentro. por fora preparo-me para me entregar a quem realmente me merece. carrego o alforge com o que me sobrou do fim-de-semana e espero que o sol se ponha sobre mim para que a semana possa acontecer: um par de olhos meigos. uma manada rasa de gente feliz. um abraço apertadinho. uma conversa por acabar na madrugada. um copo de cerveja gelada. uma seta perdida lançada por um cupido estúpido. uma boca parva que nunca se cansa de dizer o que lhe vai na alma e um sorriso capaz de enganar uma multidão – aqui estou. os olhos alinhados com o destino. à espera do melhor e do pior. com uma mão a estrangular o que já não aguenta e a outra a dizer: sampaio ri-te pelo menos mais uma vez. afinal ninguém melhor do que tu sabe que o mundo é redondo. azul. com mar. sol e sal e ainda outras galáxias que desconheces – és um ignorante tolo. acorda porque já é quase dia e os espertalhões nunca dormem – bom dia. boa semana



08/01/2019

última proclamação divina – o fim da virtude



imagem google


num momento de fraqueza da minha fé resolvi recriar o meu mundo espiritual com uma nova ordem celestial

deus. após rezar o angelus com o papa e os fiéis presentes na praça são pedro. dirigiu-se a todos os seus súbditos desejando-lhes um feliz ano novo – de seguida. em tom informal. reuniu com os seus representantes na terra para lhes transmitir a resolução do seu último concílio

-- dada a impossibilidade absoluta de continuar a prestar o meu trabalho espiritual no planeta terra: promover a espiritualidade.  a plinitude e a justiça divina. quero informar-vos que me retirarei definitivamente da vida dos humanos – saio sem mágoas e com a certeza de que tudo o que estava ao meu alcance foi feito – até deus tem limites que não pode transcender – claro que ninguém sabe isso melhor do que eu: o homem é um ser profundamente complexo. fui eu que o criei com razão. com emoção e com espírito – toda esta complexidade tinha como objetivo o seu desenvolvimento sustentado numa espiritualidade esclarecida e na busca permanente da verdadeira felicidade: com misericórdia e limpidez interior – ao longo de todos estes milénios não houve um único dia em que não tenha seguido a evolução interior e exterior do homem. acreditem que nunca foi fácil. mas eu sabia que não seria – a ambição humana nunca me facilitou a vida – no entanto. sempre acreditei na vitória do bem sobre o lado escuro do homem e também sempre acreditei que o erro ou o pecado seria sempre a verdadeira motivação para a sua renovação – aprender com os seus próprios erros e perceber a necessidade de se recriar diariamente com novos desafios para uma religiosidade assente na bondade. tolerância. proteção aos mais vulneráveis. e resiliência perante as complexidades do mundo contemporâneo – infelizmente nada disso aconteceu. o homem multiplicou por mil as razões para pecar: mais egoísmos. mais ódio. inveja. ciúme. mágoa e tristeza. a estrutura familiar colapsou. as novas tecnologias corromperam o tempo. as igrejas esvaziaram-se de fé. o consumismo selvagem promoveu o egocentrismo e multiplicou as desigualdades entre ricos e pobres. a fome espalhou-se sem controlo. as guerras intensificaram-se. as alterações climáticas ameaçam o apocalipse e outras tantas malignidades que recaem quase sempre sobre os mais fracos e debilitados: crianças e idosos – o homem dos nossos dias. para além da pobreza material. está contaminado pela pobreza espiritual – em suma. habitamos um mundo caótico e em degradação acelerada onde a minha omnipresença é constantemente colocada em causa – confesso-vos com humildade que a desordem também já se alojou em mim. a sustentável leveza do meu ser foi gravemente contaminada e infelizmente não vislumbro solução capaz de reverter esta desordem agoniante – criei uma máquina sobre a qual perdi o controlo – estou no fim.  exausto. desiludido. mas com a consciência tranquila. tudo fiz em prol deste planeta e dos seus seres vivos – chegou a hora de dar descanso ao corpo. é hora de entregar definitivamente o destino da terra nas mãos dos seus colonizadores – deliberei então que os humanos. sem exceção. ficarão livres do pecado como fator decisório para entrar no paraíso – assim. informo que a partir das vinte e quatro horas do dia de hoje o pecado será definitivamente despenalizado – é com amargura que vos comunico que me retirarei definitivamente para o céu e comigo levarei todos os anjos. santos. arcanjos e querubins. reconhecendo com humildade a vitória do pecado sobre a virtude – e agora que a nova palavra de deus parta por esse mundo fora a anunciar a boa nova: nasceu um mundo novo. o mundo sem pecado – sejam felizes e deixem voar os pecados da mesma forma que voam as gaivotas

 

nota final - a ausência de pecado não implica ausência de valores éticos e morais – vivam com consciência e iluminem a vossa existência com atos de tolerância