.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

20/01/2019

um domingo de 2019






pintura - jean-michel folon





engrenagens

a escrita é como uma oficina de reparações de relógios – deste modo. quando no interior do espaço intracraniano os devaneios entram em estado de delírio. amarro neles. todos. e atiro-os para o papel – o alívio é instantâneo. o transtorno neurológico volta para valores de sossego e o artista retoma a forma humanizada – uma casa mágica. onde o papel é a relojoaria e o escriba o relojoeiro [o contrário também] – o relojoeiro. é o homem dos restauros quase sempre complicados. pressupostamente sábio. amigo de atena. solitário. olhos curtos e precisos. amarrado a tudo que é silencioso e a ferramentas minúsculas – tudo ao seu redor é pequenino: parafusinhos. alicatezinhos. rodinhas. cordinhas. pincinhas. um folinho para soprar poeirinhas e umas não sei quantas lupinhas para aumentar mil vezes a imperfeição – sou então relógio e relojoeiro ao mesmo tempo. quer isto dizer. dou corda e gasto-a – muitas vezes não é nada de grave. troca-se a pilha. duas abanadelas e tudo volta à hora certa – e digo para mim mesmo: está como novo sr. sampaio. tens aqui uma máquina para a vida – hoje já não se fazem coisas destas – um sorriso que dobra a esquina da rua e lá saio para o mundo com a convicção de que as palavras são pontuais. rigorosas. extremosas e bonitas. tudo a bater certo com greenwich – gosto de pontualidade. um homem nunca deve chegar atrasado a nada. muito menos nas palavras que falam sobre ele – não tolero aqueles sujeitinhos que se esquecem de ver as horas. e depois. com cara de pau. tem a lata de dizer que não é por mal. é feitio. são assim – não acredito em homens sem relógio – outras vezes. olho para o relojoeiro e percebo que a coisa é grave – a máquina encostada ao ouvido. ar sombrio. carregado de preocupação. mexendo para lá e para cá. como se estivesse a tentar reanimá-la de uma paragem cardíaca – mais uma abanadela. revira e volta a revirar e o semblante em agonia acelerada. os batimentos estão por um fio – o terror estampado na face do relojoeiro – nem necessita falar. percebo que a situação é grave. irreversível. com os olhos na lupinha diz-me: vamos ver o que se pode fazer sr. sampaio. mas pelos sintomas não lhe descortino grande futuro – isto está mesmo muito mau – deixe ficar para ver o que posso fazer. passe daqui a três ou quatro dias e já lhe poderei adiantar alguma coisa – vamos pedir a deus que tudo corra bem – saio da relojoaria com a certeza de que o perdi para sempre – não haverá mais tic tac – esta crónica está morta


[e assim foi preenchido cada dia da minha semana. crónicas sem rede. escrever e postar no mesmo dia – foi um teste duro e complicado – confesso que gosto muito mais de deixar as palavras a alourar em lume brando. ficam mais condimentadas e as papilas gustativas excitam-se com mais facilidade – bem sei que cada leitor sentirá um sabor diferente. mas creiam. tudo foi ao lume com muito amor e sempre a pensar em vocês – boa semana]





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