pintura - jean-michel folon
engrenagens
a escrita é como
uma oficina de reparações de relógios – deste modo. quando no interior do espaço intracraniano os devaneios entram em
estado de delírio. amarro neles. todos. e atiro-os para o papel – o alívio é instantâneo. o transtorno neurológico volta para
valores de sossego e o artista retoma a forma humanizada – uma casa mágica. onde o papel é a relojoaria e o escriba o relojoeiro [o contrário também]
– o relojoeiro. é o homem dos
restauros quase sempre complicados. pressupostamente
sábio. amigo de atena. solitário. olhos curtos e precisos.
amarrado a tudo que é silencioso e a ferramentas minúsculas – tudo ao seu redor
é pequenino: parafusinhos. alicatezinhos. rodinhas. cordinhas. pincinhas. um folinho para soprar poeirinhas e umas não sei quantas lupinhas
para aumentar mil vezes a imperfeição – sou então relógio e relojoeiro ao mesmo tempo. quer isto dizer. dou
corda e gasto-a – muitas vezes não é nada de grave. troca-se a pilha. duas
abanadelas e tudo volta à hora certa – e digo para mim mesmo: está como novo sr. sampaio. tens aqui uma
máquina para a vida – hoje já não se fazem coisas destas – um sorriso que dobra
a esquina da rua e lá saio para o mundo com a convicção de que as palavras são
pontuais. rigorosas. extremosas e bonitas. tudo a bater certo com greenwich –
gosto de pontualidade. um homem
nunca deve chegar atrasado a nada.
muito menos nas palavras que falam sobre ele – não tolero aqueles sujeitinhos
que se esquecem de ver as horas. e depois. com cara de pau. tem a lata de dizer que não é por mal. é feitio. são assim –
não acredito em homens sem relógio – outras vezes. olho para o relojoeiro e percebo que a coisa é grave – a máquina encostada
ao ouvido. ar sombrio. carregado de preocupação. mexendo para lá e para cá. como se estivesse a tentar reanimá-la
de uma paragem cardíaca – mais uma abanadela. revira e volta a revirar e o semblante em agonia acelerada. os batimentos estão por um fio – o terror estampado na face do relojoeiro
– nem necessita falar. percebo que a
situação é grave. irreversível. com os olhos na lupinha diz-me: vamos ver o que se pode fazer sr. sampaio. mas pelos sintomas não lhe descortino grande futuro – isto está mesmo
muito mau – deixe ficar para ver o que posso fazer. passe daqui a três ou quatro dias e já lhe poderei adiantar
alguma coisa – vamos pedir a deus que tudo corra bem – saio da relojoaria com a
certeza de que o perdi para sempre – não haverá mais tic tac – esta crónica
está morta
[e assim foi preenchido cada dia
da minha semana. crónicas sem rede. escrever e postar no mesmo dia – foi
um teste duro e complicado – confesso que gosto muito mais de deixar as
palavras a alourar em lume brando. ficam
mais condimentadas e as papilas gustativas excitam-se com mais facilidade – bem
sei que cada leitor sentirá um sabor diferente. mas creiam. tudo foi
ao lume com muito amor e sempre a pensar em vocês – boa semana]
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