o
autocarro só passa uma vez à nossa porta
depois de uma determinada idade perder o que quer que
seja é um aborrecimento e. no meu entender. deve sempre merecer a nossa melhor atenção
e reflexão. se essa perda se tratar de pessoas que prezamos – podemos perder a
carteira por descuido. o cartão de crédito por tontice. o carro gamado por um
meliante sem escrúpulos ou a pantufa devorada pela boca do nosso fiel amigo – todas
estas coisas se podem recuperar ou em último recurso redimensionar para baixo os
danos da perda – é hábito dizer que só a morte não tem solução. e é verdade –
mas há uma coisa que já não dá mais para perder. falo de amigos ou mesmo apenas
de pessoas que estimávamos e que. com as suas diferenças. nos ajudavam a manter
a nossa saúde mental e principalmente. iluminavam emocionalmente a nossa
passagem terrena – o que seria de nós sem amigos – mas já todos perdemos um
amigo. creio que são poucos aqueles que nunca tiveram uma desilusão com alguém
que estimavam – eu não sou diferente. já perdi amigos e confesso-vos que não
foi nada fácil – mas são estas perdas que nos fazem valorizar aquelas que
resistem ao tempo. com diferenças. com brigas e com a nossa constante adaptação
ao tempo que gastamos à inevitabilidade do envelhecimento – como diz o ditado
popular os amigos veem-se no hospital e na cadeia – por mais teorias. juras. abraços.
boas palavras e sorrisos de orelha a orelha só saberemos o valor de uma amizade
depois de testada – é nos momentos menos bons que ficamos a saber quem realmente
está connosco e dá o corpo às balas – e não raramente temos surpresas. os que
pensávamos estarem connosco são os primeiros a abandonar o barco. e quando
olhamos para o lado somos surpreendidos com a presença de alguém que não
imaginávamos ser possível estar ao nosso lado a segurar as pontas – o que
acontece é que as amizades mais antigas. fruto dos anos. acabam por cair numa
rotina ilusória – isto é. fruto de um conhecimento adquirido ao longo do tempo acabamos
por nos desviar daquilo que somos para agradar exclusivamente aos nossos amigos
– os amigos fazem o mesmo e tudo parece perfeito até que um dia a faísca
acontece. a combustão lenta mina a tolerância e a lealdade. os laços
desfazem-se e quando ninguém espera dá-se a explosão – lá se foram dezenas de
anos desfeitos em segundos – no passado raramente demonstrava interesse por
conquistar novas amizades. achava sempre que já tinha amigos suficientes – com
o tempo passei a dar mais oportunidades às amizades recentes. surgem numa fase
da vida em que estamos mais sábios e mais competentes para ver além do papel embrulho
– geralmente. estas novas amizades. acontecem já como fruto de uma comunhão de
interesses. se gostamos de futebol fazemos esse novo amigo num jogo de casados
e solteiros. se gostamos de pesca fazemos o amigo a vender o seu espólio na
lota e por aí adiante – são momentos fantásticos. o mundo parece-nos perfeito e
estamos-lhe gratos pela sua imprevisibilidade – com milhões de hipóteses para o
desencontro e contra todas as estatísticas a equação deu erro e o encontro
aconteceu quando menos esperávamos – e dizemos os dois: olha a sorte que
tivemos. quem havia de dizer que nos haveríamos de conhecer neste lugar – e é
assim mesmo. quem haveria de dizer. ninguém. mas aconteceu e estamos todos
muito felizes por habitar o planeta terra – olhamos em frente e passamos a
acreditar no destino: estava escrito nas estrelas. ainda bem que assim foi. estamos
agradecidos por fazerem parte da nossa vida – finalmente podemos arrasar com a
teoria de que é necessário andarmos todos na escola para construir um
relacionamento de amigo verdadeiro baseado no respeito mútuo. na verdade. na
cumplicidade e na lealdade – mas com a idade. e apesar de toda a sapiência
adquirida ao longo da vida. perder uma amizade levanta outros problemas: a vida
começa a escassear e pode cair por terra aquela velha máxima de que o tempo
coloca tudo no seu lugar – pode muito bem não colocar já coisa nenhuma e não
coloca só por falta de tempo. não coloca também por falta de vontade ou paciência.
já não há força e muito menos a ingenuidade e perseverança da juventude – o
corpo está cansado e a mente já não tem flexibilidade ou disposição para
grandes reflexões sobre o que está certo ou errado. o que pode ser desculpado e
o que não tem desculpa – as atenuantes para o erro. ou para o perdão cristão. já
não são levados em conta. não porque não haja atenuantes ou por não querermos
perdoar e desejarmos até um mal maior em forma de pena compensatória. não. o
problema não é esse. é bem mais simples do que se possa imaginar – em boa
verdade. há apenas o desejo de uma nova vida. um recomeço. os limites para a
tolerância alteram-se e já não há pachorra para aceitar mais do mesmo. oferecer
a outra face está definitivamente fora de hipótese e que se lixe o caminho para
o céu – que se dane o paraíso. o preço da entrada é demasiado alto – dobramos a
curva da tolerância. deixamos de a ver. e não fazemos conta de voltar para trás
para a recuperar – já não dá. estamos esgotados e sem forças para compreender
os outros – chegou a hora de nos compreenderem. e principalmente. de nos
aceitarmos exatamente como somos – já não dá para fazer fretes – recordo aqui
uma frase de clarice lispector que no meu entender resume bem a perigosidade de
conceder… “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe
qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” – já entrei naquele estágio
da vida em que pago para não ter aborrecimentos e. sobretudo. não ter que
aturar cromos – nem tudo na idade é mau. nestas coisas de gerenciar relações a
idade é um posto e quando deixamos para trás qualquer coisa já não há volta a
dar – se no passado era um problema que nos tirava o sono. ficávamos tristes.
os dias confundiam-se com a noite. a comida não passava. os cigarros
acumulavam-se na boca e a vontade de dar dois murros no culpado era substituída
por um murro numa porta e os dedos é que pagavam com um inchaço durante oito
dias – ficávamos para morrer. e não havia forma de acabar com a depressão. azedávamos.
sentíamo-nos injustiçados. protestávamos com o mundo e connosco e só o tempo
nos lavava a alma – agora. maduro. mas ainda sem estar a cair de podre. percebo
que a vida é assim mesmo. todos diferentes por dentro e todos iguais por fora.
é feita de perdas e ganhos. de alegrias e dissabores. de gratidão e ingratidão
e de opções que não podemos nem devemos questionar – cada um sabe o que é
melhor para si – as amizades podem ser conquistadas. mas nunca compradas –
estes são apenas contratempos que nos obrigam a reajustar a nossa entrega aos
que queremos e gostamos de ter por perto – fecha-se uma porta. abre-se outra.
redireciona-se o tempo para mais de mil coisas que ainda temos por fazer. a
vida pode ser inventada todos os dias. há tanta coisa nova nos espera – por
mais que nos custe. estou certo. que o melhor para todos é a arquivação das
comoções. boas e más na pasta dos diversos – já não compensa a trabalheira de
refazer uma relação de amizade ou apenas de cordialidade – assim faço. sempre
que uma pretensa amizade me aborrece. não há papas na língua. bato a porta e
sigo em frente que o santo tem pressa – confesso. nem quero saber se tenho
muita ou pouca razão. sei que tenho a suficiente para não me aborrecer ou maltratar-me
– o importante mesmo sou eu e aqueles que caminham comigo – o autocarro só
passa uma única vez na vida. se o perdes já não há volta a dar – podes mudar de
local e apanhar outro. mas já não leva o mesmo destino nem os mesmos
passageiros – uma coisa eu sei. tudo o que fazemos tem um preço na vida – eu
pago o meu preço. a diferença em relação ao que fui em tempos idos é que agora
prefiro sorrir para o futuro em vez de ficar preso ao passado
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