este
raio do 2016 está finalmente em estado terminal –
sou contra a eutanásia. caso contrário. há muito tempo que já lhe teria deitado
as mãos ao pescoço – para ser verdadeiro. vos digo que este ano não me deixa
grandes recordações. foi péssimo – resta-me a saúde de ferro. que não se cansa
de resistir – mas o mais irónico. é que tenho a certeza de que o guardarei na
memória até ao fim dos meus dias. uma tortura – só guardamos o que nos marca – os
que são especiais. por motivos que muitas vezes a razão desconhece – e os que
nos feriram. os que tiveram a crueldade de alterar o que julgávamos certo. mas
afinal era apenas fantasia – recordo com saudade uma passagem de ano na
traseira de uma toyota hiace. com mais
dois amigos e um brinde feito com champanhe do mais rasca. jurámos camaradagem
para sempre – a juventude é inocente – recordo-me também de um fim de ano num
hotel com a minha família. tinha eu dezasseis anos – disse mal da minha vida e
jurei que nunca mais entrava num ano novo com tanta etiqueta ridícula – lembro-me
de outro em que passei o ano em viagem de automóvel e comemorei duas vezes o
réveillon. em espanha o ano novo chega sempre uma hora mais tarde – troquei
votos de felicidade com a minha maria joão. um beijo. e promessas de que o novo
ano nos aproximaria ainda mais – felizes com tão pouco – ficou também na
memória a primeira passagem de ano sem o meu pai. foi muito difícil – a saudade
não me larga nestes dias. um pai nunca se perde verdadeiramente – e assim passaram
os anos até chegar a este triste e amaldiçoado 2016 – estou-lhe com uma raiva
tamanha que já não suporto sequer a sua lembrança – acreditem. não vou festejar
a chegada do novo ano porque sei que pouco ou nada vai mudar – vou festejar com
muito regozijo a partida do 2016 – se realmente há um deus nos confins do céu.
que não venha com desculpas de que se deve perdoar o que é imperdoável – que se
deixe de tretas e atire este ano para o covil de satanás. deixando-o a arder
nas labaredas do inferno para sempre – feliz ano novo para todos os meus amigos
e familiares – obrigado por fazerem parte da minha vida
31/12/2016
o ano que merecia o inferno– feliz 2017
23/12/2016
23 de dezembro de 2016 – parabéns
parabéns meu amor – e às doze badaladas brindámos ao teu
dia de taça na mão – primeiro foi o silêncio. depois estendemos os olhos um ao
outro. e por fim. tocamo-nos num beijo branco – e ali ficamos num abraço que
não queríamos terminar – estávamos felizes por instantes. o que sobrava do
mundo deixou de existir – e o abraço apertava-se cada vez mais – erguemos as
taças e acolhemos o destino com um sorriso que também é paz – eu disse que te
amava. e tu disseste-me que me amavas ainda mais. e juraste eternidade ao nosso
amor. prometendo continuar a enlaçar as mãos até que deus nos queira sorrir – e
ali ficámos num silêncio coberto de lágrimas que não nos magoou por ser só
nosso – há tanto de nós que não pode ser partilhado – és tão bonita. meu deus.
e eu sem saber onde deitar o teu corpo nestes braços cada vez mais entrevados –
perdoa-me. meu amor. por tudo em que falhei – eu deveria saber escrever muitas outras
palavras. mas não sei – não sei tanta coisa – mas sei que te amo até ao
infinito dos meus dias
18/12/2016
16/12/2016
deambulações noturnas XIII
15/12/2016
vou. por ali vou
vou – lá vou eu a deambular pelos
caminhos da noite. sozinho. como sempre. só assim sou capaz de me encontrar com
a realidade nua e crua da escuridão silenciosa – e lá vou eu. passo a passo.
para dentro da implacável verdade das memórias – caminhar no passado é quase
sempre uma crueldade – vou. em passo certo vou. vou pela noite adentro. sem receio.
sem cuidado. sem amparo – na noite. só a verdade emerge. os fantasmas deixam de
ser fantasmas. a ilusão desfaz-se com vergonha. e os sonhos. finalmente. adormecem
de cansaço – também eles necessitam de sossegar. não é fácil sobreviver preso a
fantasias – vou. vou tão louco hoje como ontem – vou. vou tal e qual como sou.
vou à procura de outras vidas. perdidas como estrelas no céu – vou. vou
saudade. vou dentro de mim. vou de mãos nos bolsos. vou envelhecido. vou num assobio
que se dissolve num tempo que já não me pertence – vou. vou com o corpo como
posso. vou contra um vento que me varre a face do que me sobra em pesar – vou.
vou de rua em rua. e em cada esquina. uma marca de que por ali passei sem nada
saber do destino traçado – vou. vou porque preciso de ir – é urgente ir – só a
verdade esvazia o medo da morte
29/11/2016
o nome do homem do realejo
hoje acordei com uma
caixa de música na cabeça – depois de um forte esforço matinal. lembrei-me do
realejo – a questão que pairou sobre o meu acordar ensonado foi saber o nome do
homem que toca o realejo – nada me ocorreu na memória coletiva. recorri. com a
destreza possível das manhãs. à memória seletiva e o resultado foi o mesmo. um
nada absoluto – depois de farto o estômago. o pequeno almoço é a principal
refeição de quem pensa. cansado da longa travessia do vazio da noite. nada
melhor do que um “petit dejeuner” leve. mediterrânico modesto. pão com manteiga
magra e uma meia de leite direta. tirada numa nespresso do famoso actor george
clooney. e uma almoçadeira “XPTO” com os dizeres: “breakfast” – percebi o
motivo por que se fala tanto na globalização. o estrangeirismo está por todo o
lado. faltou-me o financial times ao lado da tosta. e aquele ar de “self-made
man” que a todo o momento arranca para o mundo dos negócios. amarrado a uma
“long cashmere coat”. “paraguas” e “petite serviette en cuir noir” – não
aguentei a pressão da ignorância e saí em busca do conhecimento. tem de haver
um nome para o homem que toca o realejo – parti das premissas filosóficas. do
geral para o particular: - se os homens dos relógios são relojoeiros. então os
homens dos realejos são realejeiros – não me soou muito bem! há nesta palavra
um paladar avinagrado. azedo. assim… tipo iogurte fora de prazo – percebi.
talvez tardiamente. que um homem que toca uma caixa de música nunca poderia ser
um realejeiro. impossível. esta palavra não tem dignidade. fibra. não é
arrebatadora. ninguém ouve um realejeiro. por muita arte que o homem da música
tenha a dar à manivela – isso pensava eu. verão que vou mudar de ideias –
apenas os nomes simples perduram na história. manel. maria. tia alzira. tio
tone. arménio. quim. sr. silva. ou então um com “pedigree”. com sangue azul. um
nome que. só de olhar. absorva toda a história dos antepassados. lembrei-me. por
exemplo. dos pauliteiros de miranda – o exemplo não podia ser melhor. o nome
diz logo que estes gajos são do tempo do viriato. e os paus são apenas um
pormenor. esta região tocaria outra coisa qualquer. o seu DNA é daqueles que
não engana. e a música surgiria nem que fosse batendo com calhaus em latas de
salsichas – pensei então que o nome mais apropriado para o homem do realejo
seria “realejumúsico” – se este homem faz música tem toda a lógica este nome –
mas a questão reside em saber que tipo de música o homem do realejo toca. e se
isso influenciaria o nome da sua arte – imaginei um “realejeiro” a tocar jazz.
bem. o nome sofria logo uma mudança substancial. para cativar os aficionados do
jazz. o melhor seria o “realejeiro” chamar-se “realjazemúsico”. isto é. se este
tivesse importado a caixa de new orleans. e a música produzida pela manivela
permitisse imitar a trompete do louis armstrong – depressa compreendi. que este
nome. ligado ao jazz. era bastante redutor para os “realejeiros” da música
popular. os ditos pimbas. e que nunca ouviram jazz – ficariam ligados a uma
música influenciada pela comunidade negra. coisa que a nossa terra não está
preparada. por aqui. o fado ainda é o que dita as regras – mas ainda há os
nórdicos. os homens de cabelo loiro e olhos azuis. desgostosos com a conotação
do instrumento à cultura do cabelo afro e pele escura. é certo e sabido. que
estes gajos emproados não iriam gostar. e o mais certo seria o aparecimento de
um movimento anti-realejo – estou perante um caso daqueles que em linguagem popular.
se pode chamar de bicudo – vou ter que ter muito cuidado com as tendências musicais.
não posso castrar a clave do sol. o sol quando nasce. é para todos. logo. todas
as tendências musicais têm que se rever neste novo nome – não sou homem para
desistir de nada. mas depois de várias pesquisas “científicas” online.
enciclopédia luso-brasileira. dicionários de várias línguas. incluindo o
chinês. o árabe marroquino. romeno e o dos PALOPS. e outros meios que dispunha
para levar a cabo esta espinhosa tarefa. concluí. com muito estudo. que afinal
o nome que a linguística portuguesa construiu para este fazedor de música de “box”
é um nome bem simples: “o homem do realejo” – abriu-se uma brecha na história
para mim. posso finalmente criar um nome para um fazedor de arte musical com uma
manivela. uma arte milenar com um novo nome para o homem criador de sons
perfeitamente ligados entre si. quer isto dizer. música – este novo nome terá a
dignidade que há muito tempo é devida a estes homens da música – será um nome
próprio. capaz de ser sindicalizado. suficientemente aglutinador para levar em
frente a sua primeira associação de classe. e suficientemente robusto para
defender os seus interesses. e capaz de lhes devolver a dignidade que nunca
tiveram – estou espantado comigo. acabei de fazer uma viagem histórica. voltei
às lutas dos trabalhadores do século XIX em inglaterra. à revolução das massas.
dos direitos do operariado. do movimento sindical. da conquista do salário
justo. das desigualdades. enfim. a luta do proletariado contra o grande
patronato – estou estarrecido. pela primeira vez. faço parte da história. o meu
nome será “grândola” vila morena dos “realejeiros”. sou a revolução de uma
classe – a partir de hoje o homem do realejo será o “realejeiro” com toda a
dignidade que merece – estará ao mesmo nível dos relojoeiros. sapateiros. carpinteiros.
e até dos politiqueiros – sinto-me satisfeito. não por mim. que sou um
insatisfeito compulsivo. sinto-me satisfeito pelos “realejeiros” de todo o
mundo. e sei que não são poucos – mais tarde ou mais cedo. a humanidade
perceberá a importância dos “realejeiros” no desenvolvimento da arte musical
neste mundo inevitavelmente global – mas o mais importante é este acordar louco.
de um louco que vos escreve com prazer
25/11/2016
pensa[mente]
continuo
a pensar – pergunto-me como esta coisa de pensar pode ser importante a esta
hora da noite – tenho uns amigos loucos que dizem sempre que pensam muito – imagino
que seja por se acharem pensadores – toda a vida os ouvi murmurar. em voz que bem poderia ser considerada
alta. que são exímios pensadores – nunca
percebi bem o que eles pensavam assim de tão importante – talvez por isso sejam
mesmo muito inteligentes. guardam para si o mais importante – bem. talvez possa acontecer que eu. sem
saber. por ignorância pura. seja ainda mais louco do que eles –
nem sequer os consigo entender:
.
vou dormir
.
antes de dormir. deixo a
minha reflexão:
1
– pela manhã posso ser outra pessoa;
2
– posso não me lembrar de nada;
3
– ter outra perceção sobre loucura;
4
– já não ter amigos;
5
– não querer saber o que pensam os amigos;
6
– um [etc.] fica sempre bem num texto
.
talvez exista um conflito
de interesses. pessoais. digo eu – ainda estamos no plano de
animais racionais
16/11/2016
moliceiro
parei. banhado pelas
memórias
todos temos um dia que parar
mas queria tanto acabar de
pé
nesta imagem refletida sou
dor
ouço vozes da lida
jornaleira
almas sedentas gritam fome
e na labuta das rudes
enxadas
nasce o pão de mãos
escarpadas
com gritos de raiva me faço
subir
contra a corrente sofro a
sorrir
nas costas do rio. molice
levava
bravura das almas atadas ao
mar
hoje. apagado do tempo
presente
subo e desço em sonhos
perdidos
e na crença milagrosa de santa
joana
lembro a fé das margens em
festa
agora. aguardo a bravura do
tempo
e no levantar destas minhas
mãos
deixarei este meu ser
mergulhar
nesta água que me viu nascer
são
gonçalves. nossa colega do site luso poemas. desafiou-me a escrever sobre a
esta bonita imagem de um moliceiro – o resultado foi este
15/11/2016
12/11/2016
olhos cavados
lenço que cobre a alma
de espantos
onde olhos cavados são
rebentos tristes
negra é a cor
do que vê e do que lê.
é o mundo das mulheres
que se cobrem até aos pés
sonhos escondidos
atrás de um qualquer
onde
homens barbudos e cruéis.
punem as flores
com palavras
de alá
11/11/2016
tempo
tenho pena que alguns cérebros
dentro deste espaço global. não percebam que. para mim. escrever é passar a
minha verdade para o papel – a raiva é pelo caminho que percorri. pelo tempo em
que me enganei. e pelo desgaste que dei ao corpo em tempos que nunca
contaram para o meu tempo – agora. de tempos em tempos. corre em mim o tempo dos que já não têm tempo – toda a arte necessita de tempo. mas o tempo dos dias de hoje é um tempo em que ninguém tem
tempo para dar tempo – mas a grande verdade é que todos aqueles que desperdiçaram
o tempo. não se podem queixar da falta de tempo. mas apenas da falta de juízo
07/11/2016
05/11/2016
03/11/2016
ai. a sul
ai. se
um dia toco uma nova vida a sul. ai – talvez aí me pudésseis ver como realmente
sou. doido. a gargalhar do siso. e os braços. vigorosos. fortes. decididamente
amputados pela energia afirmativa numa indolência merecida – estou cada vez
mais certo desta necessidade de aniquilar o que me resta da memória a norte –
ai. como sei que estou certo – a sul. existe a promessa para um novo corpo.
quem sabe com um novo nome. com outra forma de escrever. mais pausada.
ponderada. precisa. justa e determinada. sem reticências. sem interrogações. e
sem vírgula a separar o sujeito do predicado – ai. como vou ser afortunado – a
vida andada a norte é uma oração complexa. dolorosa e de uma injustiça incompreensível.
onde as palavras que me fazem pessoa se concentram apenas na sobrevivência – um
dia mais. será sempre um dia a mais – ai. como isto é verdade – talvez por isso
ainda aqui estou – um dia a mais. será sempre um dia a mais – ai. como um único
dia pode fazer toda a diferença – assim. neste dia que é hoje. sou ainda uma
criatura humana. mesmo quando “não sou
nada”. e sei que “nunca serei nada”
– “não posso querer ser nada” apenas
com mais um dia – “à parte isso. tenho em
mim todos os sonhos do mundo” – nenhuma gaivota sobrevive à falta de vento
– ai. não sobrevive. não
“Não sou nada.
Nunca serei
nada.
Não posso
querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
a tabacaria – álvaro campos
02/11/2016
30/10/2016
carpinteiro - o mestre das madeiras
antónio lobo antunes diz
que é um carpinteiro das palavras – há
algo de mágico nesta frase. não me canso de a reler – a palavra carpinteiro traz-me
à memória um passado feliz e tranquilo – em catraio. lembro-me do meu pai
chamar o carpinteiro a nossa casa – na maior parte das vezes não era para coisa
de monta. bastava corrigir um empeno numa porta ou destravar uma gaveta encalhada.
coisas da humidade – a madeira em casas antigas inchava pelo inverno e recolhia-se
pelo verão – a solução era tirar umas raspas para debelar os empenos – de vez
em quando aparecia um ou outro trabalho mais carote. um bisegre para uma parede
esquecida. que exigia tábuas trabalhadas com habilidade – não havia máquinas como
nos dias de hoje. as mãos eram a tecnologia-ferramenta-arte – para atingir este
estatuto de artesão o trabalho começava bem antes de acabar a quarta classe –
para muitos destes mestres da madeira. a escola limitava-se a ensinar-lhes a
somar as medidas tiradas a olho – eram tempos em que os estudos não estavam ao
alcance de todas as famílias – no fim da primária muitas crianças tinham que
largar os estudos e começar a trabalhar para ajudar às despesas da casa – não
havia dinheiro fácil. o único remédio era encontrar rapidamente uma profissão. e
começar a aprendê-la desde cedo. sempre pelo seu progenitor. que lhe servia de
mestre até ao fim dos seus dias – todos os mestres começaram o seu ofício pelas
tarefas menos qualificadas – depois de muitos sacrifícios. com frequentes reprimendas.
puxões de orelhas e promessas de tareias. lá se ia compondo o artista – já em
idade adulta. naquele tempo depois dos vinte e um anos. os mais capazes. os
mais trabalhadores. os mais humildes. os mais aplicados e persistentes. alcançavam
o estatuto de mestres da marcenaria – era agora um pouco mais do que
carpinteiro: tornara-se marceneiro – motivo de orgulho – agora sim. este era o
topo da profissão e com ela o orgulho de pertencer a uma classe profissional
que se sabia especial na história da marcenaria portuguesa – com o título.
chegava também um salário semanal mais reforçado. o casamento e o respeito dos
colegas de trabalho. do patrão e dos amigos – no estado novo. o chefe de
família era um pilar respeitado – a trilogia: deus. pátria e família – eram
verdadeiros peritos na arte de trabalhar a madeira. e carregavam também a
responsabilidade de preparar outros jovens para a vida adulta – eram mestres.
professores e educadores – mas em minha casa. o assunto tornara-se grave. e
aquela esquina da sala de visitas transformara-se numa dor de cabeça – a situação
estava caótica. com um canto da parede ainda por preencher – já não havia
paciência para ouvir as lamúrias da minha mãe. ansiosa com as visitas de amigos
e familiares ao lar – ouvia-a muitas vezes dizer:
-- isto assim não está nada bem. é urgente arranjar um novo móvel para
aquele canto – temos de
resolver isto rapidamente. é uma vergonha. como posso receber visitas com esta sala
neste estado – imagina o que irão dizer Parte inferior do
formulário
com este argumento. já não havia volta
atrás para o meu pai – o único remédio era encomendar mais um móvel e sossegar
a matriarca – lá aparecia um homem de bata cinza-triste. enfeitada com pequenas
aparas. rolinhos de madeira. perfeitamente alinhados. todos tão perfeitos que
parecia terem sido colocados um a um. como se servissem para abrilhantar a arte
de quem trabalha madeiras raras. exóticas e caríssimas – a minha mãe lá ia explicando
o que queria enquanto o homem das madeiras acenava com a cabeça a tudo o que a
dona da casa e do dinheiro ia articulando. confirmando sempre o seu bom gosto e
saber. com intervenções cirúrgicas precisas. dignas de quem
dominava a arte de encantar clientes – e lá ia dizendo o mestre:
-- a senhora sabe o que quer. nota-se que tem bom gosto. ainda o mês
passado entreguei um móvel igual para o dr. zenha. a senhora sabe quem é não
sabe?
perante um silêncio prolongado. acrescentava
de imediato:
-- tem consultório em frente ao jardim santa bárbara. é um grande
médico. um dentista que estudou em coimbra. a “casa” está sempre abarrotar de
clientela – nunca tem horas de sair – dizem que é um grande médico e muito boa
pessoa. sem querer desfazer
a minha mãe fazia um gesto afirmativo
com a cabeça – nunca percebi se aquele aceno era genuíno ou apenas uma forma de
não ficar mal na conversa – mas logo voltava à carga:
-- não quero daquelas madeiras ordinárias. quero tudo em castanho. bem sequinho.
não quero cá madeiras empenadas ao fim de seis meses – se empenar leva-os todos
de volta. devolve-me o dinheiro e nunca mais lhe compro nada – um móvel tem de
durar. não é coisa para meia dúzia de dias
o artista garantia que não havia motivo
para preocupações. o trabalho dele era sério. as madeiras usadas eram de
qualidade e muito bem secas. nada saía da sua oficina sem garantia absoluta de
perfeição. confiança e com a garantia da sua palavra
-- se alguma coisa não estiver ao gosto da senhora. basta chamar-me e resolvo
na hora
sempre que entrava uma visita pela casa
adentro. a minha mãe fazia questão de comunicar em tom grave: “é tudo em
castanho. até as forras das costas. não quis nada em tabopan”. e continuava a
sua dissertação de valorização sobre a qualidade do material e o seu bom gosto:
-- foram caros. mas valeu a pena. são móveis para toda a vida. não foi barato.
mas é um investimento e um prazer. afinal. é para isto que tanto trabalhamos. e
esta é a nossa casa
ainda bem que não foi verdade. a minha
mãe ainda é viva e os móveis já se foram. mas a verdade é que nunca lhes vi uma
peta de caruncho no castanho. outros tempos – sempre achei que o nome da
madeira tinha origem na sua cor. mas não. era da árvore. mais tarde vim a saber
que era o castanheiro – coitadas das castanhas. mortas para fazer móveis – estes
homens especiais. mestres. domadores do formão faziam qualquer peça de
mobiliário. mesas de sala de jantar. cadeiras. cadências. aparadores. camas com
guarda-vestidos. cómodas e toucadores com espelhos laterais para que as
senhoras pudessem ter uma visão perfeita da volumetria do seu cabelo. que na
época. eram pulverizados com quilos de laca ultra fixadora – deitavam o pó de
arroz em movimentos circulares que mais pareciam agroglifos. deixando uma nuvem
no ar de um rosa-mate perfumado de pureza – eram artistas. eles. e também as
senhoras – lembro-me da mobília de quarto da minha mãe. mais tarde passou para
o meu quarto porque a minha mãe se aborreceu do d. josé – encomendou uma dona
maria. estava mais na moda – sempre que tínhamos uma visita lá ia a minha mãe. com
o meu pai dois passos atrás. mostrar as mobílias. e quando chegava ao quarto dizia
com orgulho:
-- é do estilo d. josé. feita inteiramente de carvalho. custou-nos uma
fortuna
o meu pai acenava com a cabeça em concordância
com tudo o que a minha mãe ia dizendo. também não podia ser de outra forma. tudo
o que tocava à organização e decoração da casa era da responsabilidade do
mulherio – sempre me intrigou a tradição de atribuir nomes da nobreza portuguesa
a mobílias de quarto. sabia que o d. josé tinha sido um rei de portugal. com o
cognome “o reformador” pelas mudanças que implementou no seu reinado. mas nunca
me passou pela cabeça que mandasse fazer uma cama com o seu nome – se assim
fosse. teria sido um rei de importância inquestionável – mas a partir do
momento em que a minha mãe comprou a cama d. josé. foi a imponência da mobília
que me fez reconhecer verdadeiramente a grandeza do reinado – a cama era
realmente majestosa. repleta de bilros de vários tamanhos. encaixados uns nos
outros. todos torneados à mão. um a um
-- uma mobília com aquele aparato de curvas e contracurvas não podia ter
sido inspirada num rei qualquer – o problema era mantê-la livre do pó. mas. felizmente.
isso não era uma preocupação minha
estes mestres da marcenaria gostavam de
exibir bigodes fartos. sempre enfeitados com finas partículas de serrim. o que
lhes conferia um certo ar de artesões veteranos – pelo aspeto do bigode. diria
que os seus antepassados tinham sido os responsáveis pela invenção da caravela
portuguesa – na orelha. carregavam sempre pendurado um lápis enorme. de formato
geométrico estranho. não era redondo. com um crayon grossíssimo e pesado. servia
para tudo. riscar as paredes. as madeiras. todas as explicações eram feitas a
lápis e. num instante. o projeto saía da algibeira – as medidas eram sempre tiradas
a olho e anotadas por cima de traços que ninguém compreendia – autêntica escrita
de talento – de vez em quando. lá vinha a fita métrica. não tanto para medir. mas para reforçar a credibilidade do mestre e.
por fim. para que não restassem dúvidas do seu profissionalismo. sacava do nível.
encostava-o à parede e. de olho fechado e outro aberto. soltava um suspiro indefinível
– ninguém sabia se era sinal de desgraça ou de aumento do preço final – se realmente
havia um problema. o artista franzia o sobrolho e murmurava entre os dentes a
preocupação:
-- vai ser o diabo
tudo isto era anotado num papel de
cartuxo de mercearia. cinzento-claro. marcado por duas riscas azul forte – este
cartão grosso tinha ainda outra utilidade. era colocado na testa da criançada
sempre que se esmorravam – depois. lá vinha a lenga-lenga de que os galos cantavam
à meia-noite. confesso que. por mais que tentasse. nunca ouvi um só – o papel
de cartuxo era humedecido em água. pousado sobre o hematoma. e ali ficávamos. à
espera que alguém dissesse:
-- podes tirar. já não cresce mais. agora estás pronto para outro trambolhão – tudo se curava com amor
assim era o mundo dos homens com
profissões respeitadas – nesse tempo. ninguém era verdadeiramente rico. não
havia carros de alta cilindrada. nem relógios ou roupa de marca. nem fins de
semana prolongados. o único dia de descanso era o domingo. o dia do senhor. com
a missa a recordar a obrigatoriedade da presença – e assim acontecia. vestia-se
a melhor roupa. com solenidade. brio e vaidade. peito para cima. ombros
direitos. queixo firme. bigode aparado. cabelo com brilhantina. e um sorriso
que o vestia de dignidade da cabeça aos pés – acompanhado sempre pela esposa.
discreta. sem ornamentos espalhafatosos. vestia um fato-saia-e-casaco. de lã em
tom neutro. nem fina nem grossa. perfeita para usar todo o ano – engalanada. crente
em deus e no futuro. não se cansava de dar o braço ao marido. orgulhosa – não
tinha apenas um homem. tinha um mestre. um pilar que a sociedade respeitava –
tenho saudades desse tempo. da juventude da minha mãe. do modo como o meu pai a
tratava e lhe fazia todas as vontades – também em minha casa. a honra tinha
lugar à mesa – e o meu orgulho desse tempo ainda hoje me acompanha
29/10/2016
deambulações noturnas - XI
crescer para ser doce é o caminho mais fácil para envelhecer com fel – o excesso de afabilidade faz-nos viver sem brilho – quem quer partir em paz não pode ser açucarado
28/10/2016
as cartas do tarot
tudo
que ouço fica aqui [nos
olhos]. aqui. onde o descanso não existe e tudo o que é real permanece imutável
– abano esta mágoa ao ver a minha compaixão desaparecer. sei agora que já não é
agonia. é aceitação – impossível. dizia eu – o cosmos desfaz os impossíveis – a
possibilidade habita os impossíveis – a racionalidade matemática pode também tornar-se
numa equação errante – esta racionalidade louca existe apenas para quem se
obriga a viver com justeza – errado. digo eu. é a conta feita pela centésima
vez. e o erro. sempre escondido nos detalhes. no destino. no coração que
herdamos e que só bate como quer – a borracha na mão tenta apagar o que insiste
em ser indelével. modificável. transformável. rasurável – na vida tudo é a
branco ou a preto. tudo é virtude ou tropeção. tudo é destino. interação e
ocasião súbita – tudo se dissolve em relâmpagos de luz que rasgam o tempo a uma
velocidade que nunca entenderemos – estavas lá. não importa onde. estavas e
disseste presente. e o mundo engoliu-te. digeriu-te. e fez de ti um príncipe.
onde as contas dão sempre certas pelo arredondamento. não das centésimas. mas
das unidades – se te vomitou tudo está acabado. por mais contas que faças. o
resultado será sempre um quase estava certo. se não fosse aquela décima. aquela
nesga. aquele pé que nos rasteirou. aquela rua que nunca deveríamos ter tomado.
aquela casa que jamais deveria ter sido comprada pelos nossos pais. aquela
parteira que não nos deixou cair – não há arredondamento para as centésimas – enfim.
o erro só é erro quando apaga o mérito de quem o comete – eu não produzi
absolutamente nada. sou apenas destino – sempre acreditei na vida. mesmo quando
impregnada de um coeficiente elevado de erro – sempre acreditei que o mais
certo venceria o incerto. que os caminhos sinuosos levavam ao mesmo destino dos
que são feitos de retas. e que a glória mais saborosa se construía no sacrifício
– o povo de israel andou quarenta anos à procura da terra prometida. sofreram
umas quantas perseguições. provações. humilhações. arrependimentos. hesitações.
dúvidas. mas no final a certeza de que aquele era o caminho correto – o triunfo
do bem sobre o mal. dos virtuosos sobre os impuros. da amizade sobre o
desconhecido. do céu na terra. antes
da promessa de uma glória póstuma. com a ressurreição à direita de um pai que
nunca foi meu – o castigo divino é a nossa memória. que em vida não perdoa o
destino escolhido. e o erro. o punhal – a dor é viver – e o corpo. iludido. acredita
reescrever o que já estava traçado desde o nascimento – juro que não sabia. caso
contrário. recusava-me a nascer – nunca entendi nada de destinos. de famílias. das
suas histórias e tradições. das raízes que. de tanto caminharem. já não sabem
de onde vieram – talvez um cruzado. um judeu convertido ao catolicismo. um escravo
que de tanta miscigenação acabou por ficar branco. um agricultor da idade das
trevas. marinheiro nos descobrimentos. um homem ao serviço de deus. do diabo.
da morte – não sei que caminho percorremos para chegar aqui – sou o que sou. e
só sei de mim nesta caminhada onde o fim é certo – sei do meu pai. sei do que
ele me disse. tantas vezes sem a atenção que merecia. mas eu queria o meu
próprio caminho – tolo. devia ter sabido mais do seu para compreender melhor o
meu – sei que era boa pessoa. sei que guardava o mundo num abraço inesgotável. e
que sorria do seu passado. mas com desprezo – vivia em paz num corpo moldado
por uma bondade capaz de dissolver a dor. o sofrimento. a amargura. a aflição. a
angústia – e assim fez um pé de meia que nunca foi capaz de o usar – o destino
roubou-lhe um final feliz. morreu preso a uma maldição que nunca acreditou
merecer. esqueceu-se de tudo. até de si. e partiu sem uma única palavra que o lembrasse.
morreu despido de tudo – o destino era o único que o acompanhava – como dizem
os castelhanos: no creo en brujas pero que las hay las hay – no meu caso
substituiria as bruxas por feiticeiros – e as cartas espalhadas sobre a mesa. distribuídas
em cruz como manda o livro de s. cipriano – um valete de ouro. uma dama de
ouro. um rei de ouro. e o enforcado de cabeça para o inferno. enquanto a viúva
pede à morte perdão pelo desdém com que o seu amado vive os últimos dias de
vida – baralho e lanço novamente o destino para a mesa. e o resultado não muda.
apenas o enforcado. mais enforcado. e a viúva. mais viúva. o negro. mais negro –
nada podemos fazer contra o destino. as cartas estão na mesa desde o dia em que
nascemos. e por mais que as embaralhes. que as cortes. ou que as cruzes. o
enforcado nasce enforcado e estará sempre de pernas para o ar – o natal está
aí. não tarda nada – no natal temos a família que amamos e os amigos que nos
restam. e nenhum enforcado pode sufocar o meu espírito natalício – depois do
natal... voltarei a deitar as cartas. e talvez seja eu o enforcado. com as
pernas viradas para cova. porque já pouco me importa
25/10/2016
o meu outono
23/10/2016
no fim. apenas café
entrego-me
a um café. cremoso. intenso. aromático e espesso. aprecio-o. tomo-lhe o paladar
numa degustação inocente e silenciosa – deixo-o acontecer dentro de mim. sem obstáculo
entre o seu aroma e o meu silêncio – o corpo experimenta a cafeína como se
fosse a primeira toma da manhã. mas não é – escurece o dia. e o corpo – o
coração acelera. desordenado. trémulo. sem perceber o motivo de tanto apego à
vida. revolve-se. inquieta-se. cospe fantasmas teimosos. resgata memórias
perdidas. enfrenta conflitos vergonhosos e resiste com voracidade a batimentos
confusos – mais um gole. pequeníssimo. o tempo e o café têm que durar – a
cafeína endurece a voz com uma energia forçada. torna-a rouca. fula. desconexa.
mastiga sílabas e ideias também. embaraça-se e profetiza ora raiva. ora resignação
– quando a alma adoece. o corpo desaparece – tal como os bêbados. um corpo
drogado diz sempre a verdade – e o café. numa espera perfeita. liberta um vapor
de quem arde no seu interior – o silêncio [interior também] resiste num
absolutismo implacável – olho-me de cima a baixo. e não me encontro – estou perdido. não me encontro em parte alguma. exceto na
cor do café – olho-o com atenção. é negro. negro absoluto – percebo que. para lá
deste negro. não existe nada – o silêncio é agora. também. de um negro-café-absoluto.
com aroma – o ritmo cardíaco normaliza-se num sossego aromático – tudo me
parece tão distante. remoto. quase pertence ao início do mundo. dos dinossauros
– extinguiram-se atropelados por um cometa idiota. dizem que vinha do lado do
oriente. perdido. desorientado. caiu aqui como podia ter caído noutro lugar
qualquer – a partir desse dia nada foi igual. nasceu um novo mundo – eram
bichos enormes. fortes. poderosos. temíveis. maior que qualquer plantação de
cafeeiros – sucumbiram por inabilidade ao novo mundo – continuo alheio de tudo o
que me rodeia – o corpo reclama mais droga. mais cafeína. mais descuido para
sufocar a lucidez – só perdendo-me posso encontrar-me – talvez esteja na hora
de me procurar. de dar tempo à vida. de simplesmente existir – um homem só
existe quando está vivo – encosto-me a mim. entrelaço as mãos. ligo o coração às
veias. e prometo ao corpo um último gole de café quente. enquanto o armageddon.
na minha janela. se faz anunciar em forma de vento delicado – que saudades
de um cigarro. daquele fumo a deslizar para o inferno de um português suave –
eu e o tabaco éramos suaves – sempre me senti assim suave quando me rendia ao silêncio
– confisco-te as beatas. e assim ficava obrigado a entregar o fim de cada
cigarro ao amigo confiscador – o preço inevitável de quem trazia um maço de
tabaco – não era o puto mais rico. apenas tinha mais sorte no acesso ao
dinheiro – os amigos confiscaram-me a vida em pontas de cigarros – ainda os
guardo dentro de mim – muitas vezes ouço as suas vozes: há outro mundo para além
da tua janela – são eles. tenho a certeza – quem é amigo. é amigo eterno – mas hoje.
da minha janela. já não chego a lado nenhum – há um amontoado de coisas que
acumulei enquanto fui vivendo: um livro da primária. uma espiga amarela pintada
num fundo preto. uma coleção de cromos da bola. um colégio de padres onde o
diabo encarnou. uma revolução de abril que nunca se fechou. muitas conversas a
entrarem pelas noites dentro. sexo bom e mau. correrias. quase sempre para lá
da realidade. tropeços inexplicáveis. e mais umas quantas ninharias que prefiro
não falar – velharias que perderam valor no tempo. gastaram-se na inutilidade e
acabaram por tapar a janela com futilidades – resta-me o café. o seu aroma. e
esta forma de estar sentado – estou de lado e já nada me embarra. tudo me passa
pela frente ou por trás – no fundo da chávena aquecida a borra. enlameada de um
negro pestilento. parece acabadinha de chegar de um navio negreiro – mas a
borra nunca deixará de fazer parte do café por mais escura e pestilenta que seja
– sem borra não há café – perdido em conflitos interiores. mexo e remexo o que resta
na chávena com a força de um mandingo – mexer não me serve para nada. o que é
borra. borra fica – resta-me a janela e a borra do café. cada uma como é – do
lado de fora da janela o tempo move-se [também]. num vagar que não acompanha a mão
que revolve a borra – mesmo tomado pela cafeína. pedrado. sei que o que me
resta é apenas esta borra. é ela que me mantém vivo – talvez esteja a exagerar.
talvez a questão possa ser analisada como uma doença mental. quem sabe o
problema reside no sistema nervoso. ou em mim. algo intrínseco. nascido e
criado para me fazer crescer assim como sou. prenho de infinitos. preso a um
cordão umbilical ligado a uma era extinta – mas para que serve esta conversa. para
que serve falar de tudo isto se o que interessa mesmo são as borras do café e o
seu aroma – e eu a mexer. e o melhor do café tombado no fundo da minha garganta.
morto por já não ter sido grão. o aroma perdido para sempre numa viagem escura
ao centro do corpo. e o paladar esgotado pelo esforço de o manter perto da boca.
ou melhor. perto de quem me pode ouvir – já pouco resta do café agora misturado
em ácidos estomacais. chicoteia-me a minha única doença comprovada pela
ciência: úlcera gástrica – a loucura. nenhum médico foi capaz de a comprovar. mas
a minha médica de família já me disse: o teu maior problema não é o café. mas
sim o cérebro – talvez tenha razão – e lá estou eu com a colher para trás e
para a frente. como se tudo dependesse do rumo com que guio a mão. revirando
tudo o que é passado como se fosse uma borra gigante – estou aqui pedrado. como
se a vida fosse esta colher minúscula e tudo o que cabe dentro dela – mal-agradecido.
enquanto mexo estou vivo. tenho amigos que já partiram. já não mexem mais colheres
– que é feito do luís vieira? deve estar no céu. todos os meus amigos têm
direito ao céu – era um bom rapaz. gostava de ser guarda-redes. adorava voar
para as bolas. era calado. mas maroto que bastasse – o tabaco e o pulmão
levaram-no quando estava mais bonito do que nunca. era pai – e todos o são – tenho
saudades dele. tenho saudades daquela puberdade. espreitávamos pela janela do
seu terraço. vendo a sua empregada despir-se num vagar que nos levava à lua –
ela sabia que as crianças são feitas de pressas – que sofrimento – e a
descoberta de que afinal éramos mesmo machos – ele era malandro. a empregada
ainda mais. e eu valia pelos dois – que alegria. creio que foi a primeira
mulher que vi nua. logo dum terraço de onde se via tanto da cidade – em frente.
a igreja do carmo badalava os sinos. enquanto as pombas esvoaçavam pânico. com
o tocar das horas – só mais tarde percebi o pânico das horas – desde então. tornei-me
obcecado por relógios – ainda hoje gosto de olhar o tempo através das janelas. e
continuo a ter uma casa com terraço. onde as gaivotas que guardo em mim agarram
o vento sul. quente. criador de nuvens e sonhos cristalinos – já não creio
voltar a ver nenhuma mulher nua por uma janela. mas também. para que me interessaria.
se hoje andam nuas por todo o lado? éramos
felizes com coisas simples. mas endiabradas – os seus filhos devem estar
grandes. espero que sejam felizes e saibam que o pai foi um miúdo fantástico –
o pior da morte é partirmos sem deixar nada. sem que os outros entendam o que
por aqui andámos a fazer – é disso que tenho medo. desde miúdo temo essa morte.
não só nos rouba a vida. mas também a existência – a nossa missão enquanto
homens com ambição. com consciência. com paixão. uma vontade de abraçar o mundo
e de o trazer para dentro do corpo – já não tenho onde guardar este mundo. por
mais pequeno que seja. estou cheio de nada – na minha janela o tempo corre com
todos os vagares do mundo – quando o mundo é feliz. o tempo corre sempre mais
devagar. ninguém tem pressa de tomar outro café. quando o último ainda se amarra
ao céu da boca. conservando cada particularidade do lugar onde nasceu – eu
nasci numa rua onde já não moro. nem eu. nem nenhum dos meus amigos. nem o
campo da feira. nem o campo dos padres. nem a casa de pasto luso brasileira.
nem a celestinha da lusitana. nem o sr. capa batateiro. que usava uma calça de fazenda
larga. onde se notavam os testículos a bater-lhe no joelho – não vivem ali. mas
vivem noutro sítio. uns no céu. outros noutras ruas com direito a céu – eu não
vivo ali. nem em nenhuma rua que me permita olhar o céu como outrora o via com
os meus amigos – já não tenho coragem de pedir o céu – vivo no inferno há tanto
tempo que já não saberia mais habituar-me às alturas – do café. restam apenas
vestígios da sua existência. já quase não dá para um gole. ficaram ao menos as
marcas na chávena para testemunhar que um dia existiu – uma nesga de sol atiça-me
a vontade de viver – agarro-a. mas logo a deixo escapar – tudo se me escapa das
mãos – o café está morto. como a maior parte de mim – o estômago remastiga-se. gritando
por já não suportar mais a cafeína – não quero mais aditivos para esta vida – e
a borra. cada vez mais densa. pastosa. escura. melosa. e o cheiro pestilento do
café retardado empurra a mão a mexer-se com mais força – toda esta força
desperdiçada. sem sentido. sem tino. demente. louca. ora para a direita. ora para
o fim do mundo – tudo se resume ao fundo de uma chávena. uma mão perdida em
voltas que já não me levam a lado nenhum. a borra. agora cada vez mais minha. de
tanto lhe mexer. todo eu sou disparate com tanta volta da colher. e o corpo a
pedir uma sombra para descansar – dói-me tudo. e esse tudo não sei o que é –
não sei nada. nunca soube. mas sempre procurei saber tudo – e a borra. em
agitação. agarra-se à colher minúscula. como se o paladar genuíno só existisse
verdadeiramente nas borras do café – porque sou assim? não sei – e a janela. grávida
de mil e uma coisas que nunca fui capaz de aprender. e a ilusão. débil.
desaparecida num excremento de café – está na hora de me absolver. e parar de
mexer no que resta de mim – e a borra. cada vez mais escura. negra-morte.
enquanto o pensamento me leva para a frente de um punhal. que não para de me
chamar para dentro de si – como resistirei. quando a borra um dia acabar? tudo o
que escrevo é agora com uma mão. a outra segura. amarra o último sopro de
esperança – mais nada pode fugir do interior da chávena. não aguentava – e a
colher. de um lado para o outro. ao encontro das paredes que já não distinguem
o antes do desespero – tudo está misturado. perdido num infinito de reflexões
que não se alinham com nada de racional – só a chávena continua bonita. talvez pelo
brilho da porcelana. ou pela luz que atravessa vinda da minha janela – e o corpo
a pedir contas de tudo o que ficou para trás. de tudo o que ficou por fazer. de
tudo o que não fui capaz de trazer para dentro de um futuro. que fede como
borra de café – estou cansado. muito cansado. quase a tombar com todas estas
palavras que esperneiam. como se o café pudesse acabar a qualquer momento – escrevo
– escrevo porque preciso que o futuro arquive. com veracidade. estas minhas
divagações loucas. irracionais. quase suicidas. mas também gentis. delicadas.
frágeis. elas ajudam-me a conservar a coerência nesta degustação silenciosa –
mas de nada serve. já não vou a tempo de as escolher com cuidado. já não me pertencem.
são da cafeína. desta loucura que devora cada segundo do que ainda mexo dentro
de mim – a borra do café. cada vez mais borra. e o açúcar desaparecido de tanto
mexer – um dia todas as palavras serão borra de café – não há terra que suporte
qualquer plantação de palavras. nem de propósitos. nem de promessas. nem de
coisa nenhuma. porque só germina o que um dia foi semeado – no meu corpo. todas
as palavras morrerão com o último gole de café – escrevo – escrevo porque só as
palavras me seguram nesta viagem para dentro do punhal – resisto. o aroma de
café cada vez mais distante. e a chávena suplicante. implora à razão para não
pingar para dentro da lâmina – e a borra cada vez mais seca. mais compacta. enquanto
o interior da chávena mais preta. e a porcelana a esgotar-se enquanto os dedos.
que a seguram. agoniam num esforço final para a manter junto ao corpo – e a
janela com o mundo todo do outro lado. e eu cada vez com menos força para o olhar
– sou. a cada momento. mais desta chávena. desta borra. deste negro com cheiro
a café que. por ser borra. não deixou de nascer num cafeeiro. ao lado de
milhões de grãos – resta-me a mão. que amarra o último sonho. mantenho-a presa
a um corpo onde ainda brilham dois olhos maiores que a janela – estou
absolutamente parado. os livros acumulam-se. prometendo um novo mundo que talvez
nem exista. e a leitura adiada para uma próxima vida. onde as chávenas do café
sejam apenas chávenas. o café. apenas café. e os sonhos. mais do que sonhos. e
que a força da mão. que revolve as borras. morra de cansaço. e que o negro se estilhace
como vidro. e voe como gaivotas
18/10/2016
16/10/2016
smile – a solidão dos interligados
já não posso renegar a verdade – aqui estou. solitário.
isolado. retirado do mundo. entregue a uma luxúria de imagens. inundadas de sorrisos
raros – as fotos chegam numa cadência de urgência. enquanto os likes.
atarefados e eufóricos. alinham-se pela ordem de chegada nas notificações.
anunciando. em vermelho. a sua presença– estamos todos por cá – são fotos
incríveis. com mensagens ainda mais incríveis. numa alegria estonteante. quase
a fazer mal. a doer. como droga alucinogénia. paranoica. cega – e todos os
presentes confusos. assustados. apavorados por não saberem até onde poderá
chegar esta felicidade – nunca nenhum artista tinha pintado sorrisos assim.
nunca. nem mesmo o de mona lisa – e tudo isto em redes de vai e vem incessante.
em partilhas feitas ao segundo. numa velocidade louca. estonteante – e os
sorrisos. sempre em crescimento. satisfeitos. animados. trazendo prosperidade
ao futuro – quanto maior o sorriso. maior a ilusão da felicidade – as fotos não
mentem. e eu acredito nelas. mesmo estando só. retirado do mundo e dos afetos
de proximidade – e todos reagimos. sem pensar. num impulso idiota. mas de sinceridade
inquestionável. assinalamos a receção dos sorrisos com uma nova linguagem global.
invariável. imutável e incorruptível: os smiles – símbolos que representam vida.
amizade. amor. proximidade. alegria. dor. paixão. harmonia. acolhimento.
revolta. ira. a rir pouco. a rir muito. a visionar campos de infinitos beijos. de
abraços. de carinhos. e as mãos estendidas. buscando um toque real. enquanto o
corpo se arrepia num tremor extrassensorial – somos amigos – o telemóvel vibra.
chama por mim. e o som transforma-se numa tocata sem fuga possível – atendo:
quem fala? a máquina multifunções não tem o número memorizado – afinal. é um
amigo do tempo em que os chamamentos vinham da campainha da porta. dois toques
sorrateiros. não fosse a mãe entrar em histeria e proibi-lo de vir à rua. e
logo respondia pelo vão das escadas: -- já desço – e eu. sentado na soleira da
porta. a queimar a demora. enquanto o tempo passava num vagar de meter medo – hoje.
como distinguir um amigo do peito de um amigo tecnológico? digo então. para
facilitar: é um amigo mesmo amigo. verdadeiro – que coisa mais louca. um amigo
deveria ser sempre amigo. e nunca necessitar de um pronome demonstrativo para validar
a amizade – agora temos os amigos de facebook. de instagram. de twitter. de youtube
– todos presos numa trama intelectual. ligados a uma rede que não nos deixa ficar
sozinhos – entretidos com a nossa própria companhia. descobrindo-nos.
apreciando-nos. corrigindo em silêncio
os nossos barulhos interiores – o tempo já não mete medo – ligo-me a mil
amigos. a outros que me perguntam se os conheço. e ainda a outros que talvez devesse
conhecer. e isto tudo numa irracionalidade que. por ser constante. acaba por se
tornar racional – e os amigos que não são mesmo amigos partilham as mesmas
cores. seguem a mesma moda. leem os mesmos livros. praticam os mesmos hobbies. e
pensam igual. e a religião não interessa. e o sexo? indefinido. ou só mulher. ou
só homem. ou as duas coisas. e este é casado ou está numa relação em euforia.
ou agonia – gente igual. gémea mesmo. comprovada por uma máquina que só sabe falar
verdade: a estatística facebookiana – diferente mesmo. só sou do amigo mesmo
amigo – tudo o que é cérebro é agora alimentado por fios que não vemos. que nos
levam e trazem a lugares que nunca imaginávamos chegar – agora estou em Ibiza.
de copo na mão. uma palhinha a sair de um cocktail fluorescente. e atravesso o
planeta em fibra ótica. cheguei ao japão. e o peixe. cortado fininho por uma
faca de samurai. enquanto os pauzinhos levam à boca um pedaço de imaginação – atrás
de mim. uma gueixa sussurra luxúria. anunciando o começo da noite – e a feed
notícias do mundo a girar num ecrã plano. e um canguru. perseguido por um
aborígene. ou será o aborígene que persegue o canguru? todos nós perseguimos
alguma coisa. e muitas mais coisas nos persegue sem que saibamos – tudo isto a
correr numa notícia de última hora. triste. muito triste. faz hoje anos que
pavarotti nos deixou. o avião do cristiano ronaldo sofreu um acidente. e um
marido atirou ácido à ex-mulher. enquanto a sogra era atropelada por um camião
desgovernado na via de cintura interna – estou amargurado. tonto. quase sou atropelado
por uma última notícia. não fosse um convite promíscuo para saltar numa cama surreal
– e aí estou. perdido nos lençóis. feliz como nunca. ao lado de um par de
pernas que nunca imaginei. parecem-me as da sara tavares. e pela primeira vez sou
infiel. e o corpo suspira por mais que apenas pernas. quero mais. afinal para
que serve a tecnologia? estou esgotado. esta mulher não é para mim – e a minha
vida. recordada há um ano. vejo as minhas memórias. e uma lágrima mistura-se à gratidão
de estar vivo – e tudo nas mãos é velocidade estonteante. e quase nada tenho
para fazer. a imaginação já não é minha. pertence a um grupo de fabricantes de
emoções. produção industrial. em série. e em constante atualização. e tudo me
assenta na perfeição. como se me conhecessem por inteiro. como alfaiates. com o
giz a riscar as sobras. a tesoura ajustando tudo ao corpo. enquanto o alinhavo
marca com uma certeza absoluta os contornos do corpo – bebo então para
esquecer. preciso de um copo para afogar esta angústia que. verdadeiramente.
não sei de onde veio – mando vir uma sangria. mais uns quantos amigos virtuais.
e os copos ao centro. numa amizade que não é de amigo amigo: à tua saúde.
enquanto a francesinha fumega num molho cor de pêssego. como fumega a síria. e os
mortos espalhados pelas ruínas. dilacerados por bombas num mundo cada vez mais
terrorista – no facebook também – a alegria do estômago termina em agonia.
enjoa e afoga-se de vez no mediterrâneo com gritos que são súplicas de
refugiados que. de polegar no ar. não acenam. não. clamam ao mundo tecnológico
que transforme os likes em botes salva-vidas – estou arrasado – também quero um
like para mim. um enorme. com um dedo gigante apontado para um salva-vidas que
me resgate do egocentrismo dos meus próprios likes – que ingratidão – e mais um
toque. o telemóvel vibra. e eu recuo. assustado. em pânico. descontrolado. não
posso fazer esperar um amigo. e o braço a correr com a voz para o ouvido:
desculpa. estava a trinchar uma francesinha com uns amigos virtuais – e paro a
vida para atender a urgência daquela invocação digital – todos os toques são
importantes – de seguida. mais um toque. adio o amor para a noite seguinte. outro
toque e fecho o livro. mais um e digo que já não vale a pena sonhar. tudo
acontece ao segundo. e o futuro já não interessa. o que interessa é o feed de
notícias – fecho tudo. eu também. o mundo todo. deixo ficar ao meu lado a
desilusão em que a vida se tornou. não a minha vida que por ser minha não tem
interesse para ser notícia. mas a de um smile que chora. chora como uma criança
– todos os smiles têm rosto de crianças. e eu desfeito em sofrimento saio
disparado. em wireless. à caça do pokémon que feriu o smile das lágrimas – isto
tudo sem abdicarmos de nenhum tempo porque deixamos de sentir este tempo
eletrónico. gastámo-lo como se fosse inesgotável. como se pudéssemos somar horas
aos dias. e por cada ano gasto. um mês extra. como num jogo de flippers. e por
cada centena de likes um dia de bónus – estamos parados e andamos sem dar conta
num tempo que deixamos de contar como tempo – mas conta – interrompemos o tempo
verdadeiro. caçamos o like. e seguimos vidas que nunca serão a nossa vida – e
aí vamos. por uma estrada que leva a todos os lugares. e nunca chega a lado
nenhum – olhamos o universo num retângulo que dá luz. saturado de sinais
sonoros. música. e histórias feias e bonitas. verdadeiras ou falsas. de amor ou
de sangue. e tudo isto apenas com um tremor do braço. um click do dedo – mais um
toque a pedir voz. atendemos e logo nos dizem: manda mensagem. é mais fácil – o
mundo cada vez mais mudo. os dedos já não querem olhos. já conhecem as letras
no escuro. tudo cego no mundo real – que
sofrimento – e os homens cerebrais do outro lado dos fios que não se veem a
dizerem que estás inibido de viver por vinte e quatro horas – eles fazem lei.
julgam e ditam a pena – culpado – tudo isto porque mostraste as pernas da
marylin monroe. o mamilo com piercing da janet jackson. duas lésbicas num amor proibido.
um profeta parecido com allah. um poema de escárnio. e um nu renascentista com
um carimbo a censurar o belo – e a noite chega. tão igual a todas as outras
noites. o corpo. prisioneiro de vibrações que agora se tornaram choques
elétricos. e o feed de notícias sem dormir caminha por ti com sinais sonoros de
conveniência desumana – os olhos. encostados ao sono. num estado de alerta
geral fazem o possível por descansar – são os novos guerreiros da tecnologia.
enquanto um olho dorme. o outro vigia o feed notícias – já nada te pesa no
corpo. o passado está morto. e às tuas costas já não carregas mais amigos mesmo
amigos. carregas um mundo que não é teu. suportando uma dor genética que nunca
te pertenceu – estou só. devastado de tudo. de gente que não conheço. de mim
também – sou agora um corpo tecnológico num mundo que só me aceita a rir. a
falar com frases curtas. ou com pensamentos empacotados em caixilhos dourados de
gente ilustre que não merecia este destino – e os sonhos cortados como se a
vida fosse apenas estes clicks com o polegar para cima – força amigo. tu vais
conseguir. não desistas amigo. a vida um dia compensa-te. adoro-te. és lindo.
beijinhos. gosto muito de ti – isto tudo rematado com um smile. um polegar na
direção do paraíso. e o inferno é tropeçar numa verdade perdida no meio de
tanta mentira – tudo o que digo é um like. e o que não digo também. e o que
faço leva um like com um sorriso cada vez maior – um dia. irritado. recuso-me a
por mais likes e digo: estou morto. morri. desapareci. cansei. enforcado com um
cordão de likes – é então que milhões de likes emocionais explodem para um
último adeus. o feed de notícias chora.
os dedos apontam para a terra. e os smiles das lágrimas esbarrotam-se em
manifestações de dor e pranto – carpideiras em histeria dolorosa – os amigos
que não são amigos vestem os avatares de preto. e milhares de emoções soltam
lágrimas que nada molham – estamos interligados a números de computação cruéis –
somos então um IP entre janelas que nunca se fecham e promovem uma contabilidade
que sobrevive a uma bateria sempre em carga – como tudo isto pode ser efémero –
basta um power a menos na bateria. e a morte digital pode chegar a qualquer momento
– é então que o pânico acontece. falta o carregador. o isqueiro do carro
avariado. e até a eletricidade fugiu. parece impossível. o corpo treme.
convulsões. vómitos. e uma ira que pode magoar de verdade. enquanto a realidade
está em fuga por causa de uma ressaca que ameaça matar – são os novos
toxicodependentes. viciados na carga. na luz do ecrã. – estamos todos loucos – aqui estou a jogar
com a vida. às vezes em ironia. outras. a tentar ser esperto. e lá chega mais
um like sabichão – e passam carros e bicicletas com gente que já não pedala. e
tudo sem margem de erro ou esquecimento. comandado por apitos que nos avisam:
hoje o teu amigo mesmo amigo faz anos – tudo é feito à hora certa – tal como os
comboios. os autocarros. o metro. as bicicletas. os táxis. a uber. tudo na hora
certa – e os velhos com a solidão às costas. e os doentes em ambulâncias que já
não gritam dor. e o povo incapaz de se reconhecer. não pela voz. nem pelos
olhos. nem pelo jeito de ser. nem sequer
por um abraço. nem por nada. espera sentado a chegada de um destino que não
controla – ninguém tira os olhos do ecrã – por mais noite que seja. há sempre
um ex-humano parado num apeadeiro. à espera de uma foto. de uma notícia. da
morte de um amigo íntimo do mundo das imagens. de um smile. de um sorriso
empacotado – e o like a cair. esvaindo-se como urina na sargeta. logo depois. um
escarro. um cão de perna alçada espera também pela sua vez. e o like coberto de
um ácido que corrói o cérebro – as fotos sem flexibilidade. tiradas por um
braço metálico. estendido para o fim do universo. sacam um último sorriso. e de
repente. em total demência. um suicídio coletivo numa gargalhada fotográfica – o
mundo. afinal. é todo feliz – infeliz. só eu existo – só eu sei que estou
triste. triste de morte. com uma faca encostada à jugular. e o coração a dizer:
és o único que não tem vida – não me rio. não sorrio. e não digo que hoje o dia
está lindo – não tenho trompete a tocar silêncio porque verdadeiramente não
estou morto. estou apenas nada num mundo de merda – e assim termino esta
crónica. num sorriso de verdade que. por ter mais de duas linhas. jamais terá
direito a um like feliz