.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

20/12/2011

natal 2011





                                                                     jacopo bassano




brevemente partirei para dentro da minha família. amigos e companheiros da arte da literatura – esta é uma quadra de recolha. meditação e agradecimento pela vivência de tantas coisas belas que a vida graciosamente me permitiu apreciar – sendo assim. feliz natal. voltarei em 2012. com a esperança renovada de que o novo ano será ainda melhor para mim e para todos aqueles que estimo

 

aos meus amigos e leitores desejo-lhes um feliz natal e um ano novo cheio de sucessos pessoais



14/12/2011

cadáver procura-se





jackie k. seo



as mãos. outrora fortes. crentes na imortalidade atrofiaram. enroscaram-se nos pulsos – são agora escadas em caracol para o inferno – subiram. degrau a degrau. até que um dia. envelhecidas pelo tempo. suicidaram-se no silêncio do corpo – maldito corpo que pariu umas mãos assim. maldito belzebu. maldita língua – se ao menos soubesses dizer o meu nome. talvez ainda fosse a tempo de colar a cabeça noutro corpo – aproveitava os olhos. os ouvidos. a boca. o sabor dos dias nebulosos. das maçãs à porta da loja. da espiga vermelha. do casaco aos retalhos. dos sapatos de verniz com aquela fivela dourada. do pente que arrastava o cabelo para trás do nada. do old spice a fingir o ar do mar – aproveitava tudo. menos o coração – era então outro – sempre disse que este coração me levaria à morte



13/12/2011

o meu corpo é um lugar de silêncio





lucian freud



é no mar que submerjo nas noites em que não me encontro. e no silêncio descanso – um dia entregarei os olhos a uma estrela-do-mar. uma que. por viver tão fundo. nunca soube o que era um raio de sol – não os entrego por não querer ver mais. não. sou cego desde que nasci – nunca me vi por fora. só por dentro tenho uma vaga ideia dos corpos que me ocupam – talvez haja dentro do meu corpo um buraco sem fundo. onde outros corpos entram porque têm de entrar e depois saem porque têm de sair – acredito que não encontrem nada que os faça ficar mais um pouco. nem mesmo como caixeiros viajantes – um banho retemperador. uma refeição. um bom sono para repor energias e. ao amanhecer. com as primeiras nesgas de luz. arrumam a mala e partem – muitas vezes dou comigo a imaginar que os corpos são paridos em silêncio. num qualquer pedaço do meu corpo que ainda desconheço – loucura. só pode ser. às vezes imagino coisas que não lembram ao diabo – sempre tive corpos a entrar e a sair – estranho. entram e saem sem uma palavra – nunca percebi porque atravessam o meu corpo como se fossem donos da minha intimidade – atravessam como os patos selvagens que cruzam o céu à procura de terras-refúgio. terras quentes. terras de abrigo – atravessam em formação. como se juntos fossem uma seta gigante a indicar: é ali que vamos ser felizes – acredito que também estes corpos silenciosos atravessem o meu corpo para atalhar caminho. para se acercarem mais depressa de outros corpos. mais quentes. mais abrigados. mais protegidos. mais espaçosos. mais luminosos. corpos onde finalmente podem ser felizes – o meu  corpo  nunca foi grande. sempre me senti acanhado dentro dele – imagino sempre tanta coisa. e quero guardar tudo. quinquilharias que só eu vejo como tesouros – no passado dizia-se que tudo trazia saber. em cada velharia havia vida. o conhecimento. assente em pequenos lingotes de tempo. partia de boca em boca. de terra em terra. até que um tolo de ouvido tísico. ávido de saber. escrevia em papel a alma de uma nação: o seu povo em estado puro – também eu quero guardar tudo. quero fazer parte desta nação virada para o infinito do mar. destemida. louca. arrojada. altruísta. solidária. crente que a sua robustez de nação secular advém do acreditar – a força vem das dificuldades. quanto maior. mais ao ouvido os tambores marcam a marcha: contra os canhões. marchar. marchar – sempre marchei em dificuldades convencido de que estas trariam corpos com vozes para dentro de mim – mentira – ninguém ouve o silêncio – o silêncio traz sempre mais silêncio – silêncio dor. faca. mutilação. até que um dia damos conta que já não respeitamos o corpo que suporta todos os corpos. todas as portas. todos os buracos que abro para ter a certeza que. na hora da morte. não sou comida dos corvos – morte. morte. morte em silêncio. como velho. como trapo. como pó insignificante – nunca sei nada. e no entanto. quero ainda saber tanto – tudo me ocupa espaço. aquela história de que o saber não ocupa lugar é a maior mentira que inventaram até hoje – uma mentira de um aldrabão. de um estúpido perdido do seu próprio corpo. um destes vultos que gosta de atalhar caminho pelos corpos. um preguiçoso – as saudades de mim são imensas: dos calções curtos. da bola. do pião. da carica. do calor das noites de verão. e dos invernos onde os cobertores da serra. de lã pura. agasalhavam os males da geada que cobria os campos – das memórias – com os pés encostados a uma botija de areia quente. rezava ao meu anjo da guarda. pedia-lhe perdão pelas faltas que não cometia e prometia-lhe que jamais voltaria a ouvir um palavrão. respeitaria os meus pais e os mais velhos. sempre. iria à missa. não faltaria à catequese. comungando todos os domingos a palavra do senhor – amém – acabava sempre com um pedido a deus. se por acaso me levasse durante a noite. que partisse sem pecado e. no paraíso. me esperasse o descanso eterno – estou cansado. a idade não para de avançar. e o coração já não encontra espaço para bater com precisão no meio de tantos corpos – triste e cansado. e os corpos sempre a passar calados. cada vez em maior número. e com mais silêncio – já arrastam os pés – ingratos. nunca foram capazes de pronunciar um obrigado por os deixar passar pelo meu corpo. sem os questionar uma única vez – não adianta. sempre foi assim. sempre usaram o meu corpo de passagem e. entre mim e eles. há apenas tempo – tempo feito a relógio – passam uns dias mais devagar. outros mais depressa – e eu sem nunca saber o que  fazer – olho-os. e percebo que os olhos estão costurados. passajados a linha de seda embebida em cera para resistir ao tempo – a boca cerrada por um cadeado forte. e nos ouvidos restos de folhas d’os lusíadas – numa das pontas ainda se pode ler: adamastor – talvez estes corpos sejam adamastores zangados com o rumo que dei à minha vida



12/12/2011

de nihilo nihil





                                                  peter paul rubens – ressurreição



compreender estas sombras não me é possível. há uma ordem nas palavras que não domino: dor. saudade. alegria. recordação. amor. amizade. abraço. lágrima. compreensão. bondade. resignação – tudo se devora da carne da minha carne – e os olhos calam-se

 

*de nihilo nihil – nada vem do nada – nada foi tirado de nada. isto é. nada foi criado. pois tudo o que existe sempre existiu; este aforismo resume a filosofia de lucrécio e de epicuro



11/12/2011

Sabes, Pai - jorge reis-sá





                                                                        jorge reis-sá



sabes, pai

o cachecol bege nos muros da foz
cobria as árvores com o seu pêlo, ao vento
o boné azul, marinheiro nos cabelos louros
sussurrava pequenas frases às silentes águas
o teu sorriso tão leve, enternecia o rosto
esses óculos, teu cabelo nas tardes de sol


ou o barco encalhado na areia breve
junto ao castelo onde nos passeávamos
eu tu a mãe, duas ou três falas e o meu corpo
que se chegava a vós junto à estrada


nestes muros da foz, abertos ao mar
que voava




08/12/2011

notícia de última hora




maluda



a notícia presa às mãos de quem a vende em segunda mão com o rótulo de nova – fresquinha. acabadinha de sair do forno. em primeira mão. última hora – e o pobre do homem. com sorrisos guardados na algibeira. oferece-os aos compradores ávidos de saber virgem – um vulto que cria a sua vida num círculo num círculo geométrico imperfeito. perfeito só o seu  crânio circular. tão simétrico que parecia feito a compasso – dentro deste círculo. tudo se organiza: olhos enormes. redondos. enfeitados por duas orelhas elípticas. uma boca aberta. um buraco escuro onde as palavras nunca foram pronunciadas – todos estes círculos estão presos a um tronco retangular. contraste com o mundo esférico. cai na vertical. e só a boca sabe sorrir na horizontal. sem pernas capazes de dar passos completos. gira. gira como as bailarinas dentro de caixas de música. dançando ao som da música captado pelas orelhas giratórias – sacode os braços. espalha as notícias perdidas no tempo. transformadas em cortinas de ferro para evitar os maus olhados do exterior. sem geometria. desbotadas pela luz. marginalizadas. voltam a ganhar vida com o vento perdido dos seus gestos – é o mundo por detrás da notícia. e ela ali: editada. estampada. estendida. estatelada. grávida de uma primeira página virada para o incrédulo – vaidosa pelo tamanho da letra. proclama: sou notícia. sou nova hoje. mas ontem. já me notícia – vendida em quiosques circulares. sem princípio ou fim. grita para quem passa. oferecendo-se como se houvesse ainda assunto para desvirginar. e o rompimento do hímen faz-se por um par de mãos violentas. que desfolham páginas. manchando as pontas dos dedos de tinta preta – revistas despontam entre páginas. a ganhar nova cor. agitam-se. oferecem-se em galanteios que lembram valsas em salões nobres. de um czar fotografado na intimidade – talvez seja desta que partam pelo mundo. talvez encontrem uns olhos que as adotem ou um sorriso impresso no corpo que lhes deu vida – dentro deste círculo geométrico imperfeito. há um escuro que não vem do luto. é o prédio à frente do sol. ergueu-se de um dia para o outro. como as notícias. só que o prédio ficou para sempre. e as notícias parecem caixeiros viajantes – talvez nada disto seja real. este mundo não existe. as notícias não são verdadeiras. e os homens que as vendem serão finalmente livres. os outros. os que correm em busca da excentricidade numa folha de papel. é que talvez nunca tenham existido – todas as notícias são circulares. como a vida. e até o tempo. aos poucos. se tornou também ele circular – no expositor ponho e reponho a vida dos outros. prendo-a por molas a arames velhos. que nunca substituo. esticados no tempo. hirtos. fortes. capazes de aguentar qualquer notícia. qualquer dor. sorriso ou esperança – o tempo dobrou-os. agora. já bombeiam a meio. estão cansados do peso da vida que não suportam. dia após dia. ano após ano

– bom dia. o jornal notícias e a bola

– são dois euros por favor

 perdoem-me. mas… “eu não escrevo em português. escrevo eu mesmo”*



* citação de fernando pessoa



07/12/2011

o concerto - tchaikovsky










                  o corpo descansa na mesma almofada da alma 



retalhos – número de série 07122011s(r)ego01





rené magritte


um dia destes. quando o sol nascer do outro lado do meu meio corpo. estarei de costas para este meio dia que vejo  –  há um descompasso de meio dia dentro do meu meio corpo: meio coração. meio batimento cardíaco. meio litro de sangue e meia lata de lágrimas guardadas para um aperto afetivo. um pé-de-meia de quem sabe que a vida se faz de meias verdades – talvez seja um problema giratório – meio. meio-dia. e uma multidão horrorizada abala do meio-dia que albergo para outro meio que ainda não sei onde fica – ouço bach – só a música traz a vida por inteiro até ao meu meio corpo –  e eu. sem saber a qual meio dia darei a alma por inteiro – escreverei até descobrir



06/12/2011

cinema paraíso







hoje estou assim. há em mim um abraço ainda por dar a todos aqueles de quem gosto – gosto como o filme da minha vida me ensinou a gostar: cinema paraíso – gosto como gosto das flores. do sol. dos carros que passam guiados por desconhecidos. da mãe que empurra o carrinho do bebé. da avó que corre atrás do neto. do esfarrapado que teima em vestir a roupa limpa. gosto das bolas de sabão que se perdem das mãos de uma criança. das nuvens. do mar. das minhas gaivotas livres. enfeitadas pelo sal da vida – gosto. sem saber muito do quê. num dia como o de hoje – gosto da amizade – é desta varanda que escolho o que quero ver. e hoje. quero ver todos aqueles que me fazem acreditar que a vida tem momentos que são um paraíso



05/12/2011

esotérico



onik sahakian



dentro de mim há cada vez menos de mim. estou a ausentar-me – há momentos em que já não existo. já não estou. não estou para nada – gosto desta palavra nada. sempre que a uso fico invisível. não me reconheço. e não reconheço os outros. talvez os outros me vejam. talvez identifiquem a minha face. a minha voz. os meus olhos. até aqueles gestos que se repetem por serem tão meus. pretérito – epilepsia emocional. espasmos. contração involuntária dos músculos. dos olhos. da boca. da mente. resta o ADN – o ADN tem uma particularidade única. reproduz com elegância a sinopse do seu corpo. mesmo quando o seu dono está ausente –  predominam os tiques. a boca a pender para o lado. as mãos transpiram. os olhos piscam mais de três vezes e depois aquela maneira de inclinar o corpo. como quem vacila. talvez até morrer – e os outros dizem: é ele. e eu digo: não sou eu porque eu nunca deixaria que os olhos fechassem. ou a língua sossegar – gosto dos músculos da face exaltados e do corpo firme. tão firme como as árvores que se perpetuam no chão com raízes de séculos – não reconheço ninguém porque não me reconheço a mim – aceno. sorrio. pulo. faço o pino. estendo a mão para um cumprimento de circunstância. entremeio com  duas dúzias de palavrões. e digo: prazer em conhecê-lo e. num ápice. torno-me parte do mundo. sou igual. porque ninguém sabe o que penso – quando penso. invisível ao mundo. das ruas apinhadas de gente. dos carros. dos relógios nas torres da igreja a bater por gente que já não é. das crianças com fome de um pão com marmelada. com sapatos desfeitos de subirem sempre a mesma rua esfomeados. dos mendigos. dos sem-abrigo. dos infelizes. de todos os infelizes deste mundo cruel – tudo isto é uma sala de espelhos onde o corpo gira com o retorno das imagens. umas vezes sou alto. outras baixo. outras apareço aos ésses. com as mãos no chão. e depois ainda há aquele outro espelho que divide o corpo em dois: do lado esquerdo a cabeça. e do lado direito o corpo distorcido da realidade – sou muitos e não sou nenhum. os espelhos possuem-me. não há forma de descobrir a verdade do corpo sem os estilhaçar. e quando se parte um espelho são sete anos de azar – talvez já não tenha tempo para gastar o tempo todo. isto para não dizer que azarento como sou o mais certo era partir o espelho onde o corpo guarda a memória – estilhaçado. perco tudo. os nomes de que gosto e os de que não gosto. as vozes que me adormecem e as que amarram à noite aos fantasmas. ao vento que corre pelas brechas mais exíguas do que sou. e até a minha gaivota cinzenta perderia o voo. não haveria dentro de mim espaço para asas abertas – talvez um dia possa fazer dos vidros estilhaçados um novo eu – em vidrinhos 



02/12/2011

poema numa esquina de paris - antónio gedeão





louis hayet




Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.

Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:

DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HÉROS DE LA RESISTANCE.
VIVE LA FRANCE.




27/11/2011

o outono e as sombras





                                                                          van gogh

uma porta aberta e o outono a soprar vento – não estou aqui. nem eu. nem aquele outro que mora dentro das pálpebras fechadas – tudo pode acabar a qualquer momento – tenho as palavras caídas num chão que não voltarei a pisar. é um tapete de trapos – trapos!? onde é que eu fui buscar esta ideia? não fui eu. foi o outro. idiota como sempre – estou de pernas para o ar e ninguém vê – e as sombras continuam a dançar nas paredes da caverna







24/11/2011

Saramago - Definição de filho




                                                                         saramago


"Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar os nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem. Isto mesmo! Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo corretamente e do medo de perder algo tão amado. Perder?! Como? Não é nosso, recordam-se?! Foi apenas um empréstimo".



19/11/2011

ruy belo - os pássaros nascem na ponta das árvores




ruy belo




As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração



08/11/2011

perfume




lucian freud



gastas o tempo a não ser. dizes: são palavras senhores – nem atena foi feliz e tu. perdida no saber do que nunca foste capaz de aprender - cultura - será que sabes escrever? foste barriga prenha – és cruz para quem caiu do meio das tuas pernas – parir é dor. criar é amor e tu envolta em canetas – nas fotos que guardam o passado: um pai. faz tranças num cabelo igual ao teu – e o vento já partiu da boca aberta de éolo – aguarda. todas as folhas ao teu lado partirão – e na tua face. os primeiros sinais de outono. pau seco. despido. na pele a memória de uma virgindade perdida – e o belo a crescer – entre as pernas. resta agora o barulho das águas que se perderam. búzio com o primeiro choro  – és mulher. ainda – e mãe?

[e tudo morreu nas entranhas. ao seu lado a placenta jaz imóvel. acabaste de perder a tua única vida]

 



01/11/2011

teresa teixeira – sterea




teresa teixeira


“Às vezes, amigo, caem-me palavras líquidas dos olhos de te ler...”

sterea – 02.06.2011

 

comentário feito ao meu texto -“nunca acaba amiga”

 


como dizer-te que as tuas palavras sufocam – o ar desaparece. um nó de comoção aperta. e eu sem saber deslaçar esta aflição – na cabeça formam-se atalhos que me levam para perto do que dizes –  há palavras que nunca se apagam. e o corpo certifica para sempre o que é ser feliz – a cadeira ainda é a mesma desde aquele dia em que te li pela primeira vez. só o couro perdeu a cor. gastou-se na procura de um lugar seguro onde guardar as palavras que me deixas – escrever é bom – saber que me lês é especial – sempre que me escreves deixas-me cansado – fico sem saber o que fazer ao coração – deito as mãos ao peito e sei que ele bate ao ritmo das tuas palavras. sempre certo. ritmado pelos afetos de quem gosta de ler o que as palavras escondem – e o pensamento sem nada dizer. perdido nas entre linhas da vida que deixas tombar sobre o papel. feito de bondade – as estrelas brilham mesmo quando não há noite – o tempo é a tua alma. fez-te palavra – resta a memória – o que seria dos homens sem ela? sem nomes. sem lugares. sem abraços. sem bondade. há rostos que não se podem esquecer. momentos – momentos escritos são para sempre – memória – e leio e releio e o corpo ali. aqui. acolá. os olhos parados em sorrisos. eternos – não há força que desocupe o tempo quando dizes que as palavras são feitas para abraçar. e eu a agigantar-me ao mundo. a acreditar que o passado nos teus olhos é esperança. até a dor termina quando sorri pela vontade de te dizer: obrigado. obrigado por me fazeres feliz. obrigado por me ajudares a escrever. obrigado por me ajudares a ver o caminho. certo pelas palavras com que me abraças – memória – o que seria dos homens sem ela – há um outro tempo na tua escrita desigual. mulher-abraço. mulher-doce. mulher-dor. mulher-esperança. mulher-futuro. e uma mulher-mulher capaz de escolher a bondade. estender as mãos à vida. à amizade – e eu deste lado a ouvir o que escreves – ouço palavras como se fossem ditas ao ouvido. e o nó aperta. sufoca. e o ar foge. e a dor de estar feliz aqui dentro a dizer-te: doce memória. bendita memória – e abro mais um texto. e lá vens tu devagar. em silêncio é primavera. pelas rosas brancas – as amendoeiras sempre dão flor. todo o ano. o fruto pendurado em palavras que não acabam – e lembro as vinhas do douro. o rio a correr. é outono. à lareira chama-se o inverno. largam-se palavras. frias. à sombra do que arde. é quando a tristeza volta às noites longas. aqui o tempo parou. para sempre – e eu estou no meio de palavras-bondade. palavras-mel. palavras-saber – memória – quando escreves há em ti palavras que me apertam e só a dor. em sorrisos. me faz lembrar que sou mortal – quanta bondade. quanta ternura. quanta beleza há nesses olhos que sabem ler estas minhas palavras tortas. loucas. perdidas no tempo que imaginava só meu. pela incompreensão de nem eu as entender – e eu ali. a contar pedras no chão. juntava-as arrastando as pernas de um lado para o outro. uma a uma. até erguer que me cegou para o outro lado. um muro de vergonha. um muro apenas atravessado pelo som que anunciava a partida dos sorrisos. em bocas que nunca souberam dar um beijo – um beijo teresa. um beijo na face que já não tinha lado – não há lados para aqueles usam palavras para acarinhar. para dizer gosto – gosto porque gosto. porque é quente. é verão. porque é frio. é inverno. e no teu tempo inventas outro tempo. o tempo do que é desigual pela força de um outro tempo. feito à força de nunca veres o erro nos outros – sou erro. mas depois de te ler. volto a ser apenas eu. desigual sim. mas eu. assim como sou em cada palavra que escrevo feita memória – tu nasceste com essa grandeza de saber ler as palavras com abraços. e depois. escreves essas coisas que me fazem ver novamente o tempo como se hoje fosse o primeiro segundo de um dia que nunca tive. um tempo novo onde o erro ainda não tinha nascido – memória – e os muros voltam a cair. as pernas voltam a fazer cair as pedras para lá das nuvens onde vivem os arrependimentos que nunca consegui escrever. linhas em branco. imagino eu – não podes. nunca mais. fazer-me isto. teresa. estou sem ar. e as palavras sufocam. não sei como te dizer obrigado. sem ter de que parar a meio para voltar a ganhar fôlego – estou cansado. estou cansado. mas feliz. por ainda conseguir dizer-te obrigado. obrigado por manteres a memória como um abraço feito de palavras que não sei esquecer – obrigado. teresa. até sempre



15/10/2011

instantes à sombra da luz





j. rafael pintos lopez




olho

submeto-me ao dia de sol

a esplanada toma a cidade

óculos ray-ban

perna cruzada

costas no chão

onde vivem todas as dores

pela frente

o sol e o “garçon”

reclamo atenção aos dois

pssssssssss

um café curto como o raio

de luz

o dia já vai longo

olho

os que não me olham

estamos todos ao mesmo

sol

finalmente o pedido

atiro-me ao café

preciso de um excitante

cafeína

com adoçante

tenho medo da diabetes

de seguida um raio de sol

este é meu. escolhi-o  

pelo sorriso

pela luz

é vida

olho

nestes dias só sei olhar

estou fora do corpo

da roupa

da intelectualidade

dos óculos graduados

há quem pense por aqui

livros abertos

jornais enormes

revistas cor-de-rosa

todos menos eu

a diferença

mais uma vez marginalizo-me

não sei ler com o sol

os raios queimam palavras

olho

não faço nada

sinto umas dores

vivem por detrás

às costas do que vejo

é a vida

olho

para a frente

vento ameno

olhos frágeis

ao tempo

à idade

à cidade

para onde caem os sonhos  

há sol em qualquer canto

nos hospitais. nos asilos. nos olhares

há sol onde há medo e morte

é a vida

olho

cimento negro desbotado

irritado

o cão matou o marido por ciúme

crime passional 

dizem os jornais diários

gente que cuida do que vê

correm carros

correm pessoas

correm cafés

só mendigos permanecem fieis a si mesmo

olho

é a vida

olho

é verão

corre o “garçon”

corre o copo

com água pelas bordas

mais uma  

e é o fim da gota

mas é de equilíbrios o “garçon”

equilibra o copo

o sorriso

no ouvido

o francês com sotaque

da porta da casa:

“un café très rapide”

de seguida o lisboeta:

“uma bica curta se faz favor”

está com pressa

diz a boca

no olhar

no gesto

o suor

é a vida

e os olhos

dos clientes extasiados

seguram o copo como se fosse o mundo

talvez seja

afinal somos feitos de água

e da água não há medos

só quando os sorrisos se afogam

no tempo

no próximo mês

depois das férias

perdem-se de todos os raios de sol

e há tantos pelas ruas

perdidos no calor

abandonam-nos

partem para “vacances”

é a vida

olho

e os candeeiros estáticos

agarrados às placas de trânsito

sentidos obrigatórios

obrigações impostas

rotundas que não os deixam circular

e o polícia vestido de pistola

acena com a mão para dizer:

“mais rápido”

mas estamos de férias

o país está de férias

as matrículas amarelas estão de férias

temos que andar ligeiros

é a vida

olho

o sol cai

a água do copo não

cai a cidade

não cai o “garçon”

caem os óculos ray-ban

não caem os olhos leitores

cai o descanso

não cai a vida

ergo as costas

desdobro as pernas

levanto o corpo

olho a cidade

morta. escura

escura

vivos só eu e o "garçon"

tudo o resto fugiu

do escuro ou de medo

aproxima-se uma nuvem

talvez chova

e eu sem guarda-chuva

talvez fique aqui para amanhã

a cidade voltará com o sol

e o “garçon” também

 


11/10/2011

vou começar um grito com: era uma vez




                                                             gottfried helnwein

 


sem saber o que trazia dentro da pele. nasci – com a primeira palmada. o primeiro grito. de vida. arreliei-me – o peito encheu. o corpo inchou e. em protesto. gritei – gritei alto – foi aí que aprendi a gritar. não a chorar. a gritar – grito por tudo e por nada. de tanto gritar. já ninguém distingue os meus gritos de revolta – noite. sempre noite – vou criar um novo grito para matar os silêncios que nunca acabam – vou começar um grito com: era uma vez – ter um grito com história. um príncipe encantado. montado num cavalo branco. com asas de gaivota. apaixonado encontra a princesa mais bela de todo o universo. mais bela que a branca de neve. e os gritos altos nascerão ainda mais dentro da pele. quebrando todos os sapatos de vidro. todas as abóboras-carruagens encantadas. e as ratazanas. agora homens mentirosos. que inventam finais felizes num mundo intolerante - gritos sem som – malditos ruídos silenciosos – quero um grito apocalíptico. um grito que faça estalar todos os tímpanos da terra. quero um grito que envenene todas as maçãs podres – grito. tudo o que ninguém ouve. grito até que a boca. os lábios. a língua. e as cordas vocais se disformem. rebolo. entrelaço os pés pelas mãos. arranho. arranco os cabelos. os ouvidos. o cérebro. o coração. e por fim os pulmões. para tirar a respiração ao próprio ar – grito pelo castigo que deus me deu: saber-me – sempre soube – um dia. quando cortar os pulsos. os gritos serão sangue aos pés de todos os surdos  



10/10/2011

nada. nadas. ninguém



                                                      mário cesariny


alguém me dá uma ajuda a encontrar o meu nada - isto que me está a acontecer não é nada bom - há nadas por tudo quanto é nada e não consigo reconhecer o meu – talvez esteja por aí misturado com os vossos nadas 



04/10/2011

nos ouvidos a faca




lucian freud


foto: em cima de um banco de pedra a faca sangra. ao seu lado a língua jaz - reconheci a faca. usava-a sempre que não podia falar. com esta cortava a língua junto às cordas vocais. guardando-a depois no bolso da conversa de surdos – anémico pela repetição constante dos sons fónicos. caía em silêncio – assassinado o ruído. entorpecia  o tempo até que o sangue estancasse a morte – ali ficava. adormecido pelas ninfas da morte. ouvia os cânticos da vida dos felizes. refletidos na lâmina. polida e brilhante. projetava imagens de gente que nunca cheguei a conhecer – o melhor era fingir que já não estava vivo. enganar o chamamento da morte por mais um dia. levar os sons a uma nova vida. dobrar o cabo das tormentas no fio da lâmina – as pestanas apodreceram. caíram perdidas no desejo de não ter mais surdos a meu lado – só eu sei que ainda não estou morto. só meus ouvidos morreram entre amigos – eram exclusivos estes amigos. eram meus: dizia a faca. muitos. chegados de todos os lados – sou apenas um. quase morto. sem olhos. a um pequeno nada de cegar – aninho-me. deixo o corpo entrar dentro do meu outro corpo. protejo-me – para trás ficavam as mãos amarradas à cabeça – os olhos quase mortos anunciam outras mortes à gargalhada – todos estaremos mortos. mais cedo ou mais tarde – enterrado entre o braço e o antebraço. a vergonha de ver o que nunca devia ter visto – apontei o dedo indicador para dentro de mim: culpado – não havia piedade naqueles corpos. vaidosos. arrogantes. pretensiosos. presunçosos. elitistas. racistas e anormais de profissão – por fim parava o sangue com um garrote feito de coisas que ouvia. sem valor. nas veias deixava de circular tudo o que era revolta. suspendia a respiração. enroscava-me na posição fetal e hibernava até a memória esquecer a existência dos pequenos nadas – ali ficava. dia após dia – e a primavera chegou com palavras 



30/09/2011

metaforizar




mauríciio takiguthi - o louco



não invento metáforas. vejo-as – o embaraço está na forma como vos entrego esta minha parte abstrata – excêntrico. despejo no papel tudo que contemplo – vivem como os cigarros: acendem-se. duas puxadas. beata. e acabam com o fim da matéria combustível – escrito – nos vossos olhos. o exagero. a crítica ou o sorriso pela maluqueira do que vos oferto – nada muda. apenas o tamanho dos olhos de quem me vê através da figura de estilo – a metáfora será sempre um pedaço da minha inabilidade para dizer o que vejo de uma forma simples – há olhos enormes. do tamanho do feijoeiro mágico. aquele que depois de alcançar as nuvens permite ao gigante descer à terra para descobrir o belo – olhos apaixonados. generosos – outros. como azeitonas. nem sabem que existo. como os pigmeus mbuti. não tenho genes de crescimento. olham-me como se tivesse nascido ainda ontem – olhos desgostosos. distraídos – só a metáfora é real – sei que muitas vezes sou um louco aos vossos olhos. mas não me atropelem pelo exagero do que busco em mim – usem uma metáfora para me descrever. afinal compensa sempre ter um louco escondido em palavras que não se veem – não vos ouço ler   

 

– metáforas: algumas padecimento. outras adorno de amarração: o vosso corpo aos meus olhos –





28/09/2011

clarice lispector




                                                                   claris lispector



É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.



27/09/2011

puta vida




salvador dali



estávamos afinal os dois doentes: um ouvia para nada ver. o outro cegou para não ouvir - fora desta caixa mágica esquizofrénica deixei ficar os beijos. entrego-os em mão como carteiro e digo: são flores meus leitores – vestido a rigor. camisa cinza aberta até perto do umbigo. deixa ver tudo o que é entranhas. entre os pelos hirtos do peito sobressai o cordão de ouro com um cristo pendurado pelas orelhas – está de castigo. digo eu – na cabeça um boné de basebol com um bordado a letras vermelho vivo: puta vida    o carteiro fica sempre doido duas vezes – depois. sem que as palavras estivessem autorizadas a sair dos olhos. parto com a caixa amarrada às costas – esfrego-a vezes sem fim mas não há génio – só reconheço o mau génio da doença que me mata: pensar – e a cabeça a cair –


26/09/2011

os ais




paula rego


ai se eu fosse escritor de romances. ai! talvez nunca mais dormisse. escreveria noite e dia. e atrás de cada palavra inventava um novo ai – um ai de amor platónico. um ai de orgasmo. um ai tântrico. um ai febril. um ai húmido. um ai de arrepio de garoto que. pela manhã. com o nascer do sol. procura na imaginação a rapariga que inundou os lençóis de ais – ai como a vida é bela



22/09/2011

escrita desgovernada




rene-magritte-la-victoire



dias em que escrever é uma autêntica loucura. um suicídio – as portas não param de ranger ferozmente. e as letras ficam entaladas com o vendaval – não acredito em fantasmas. mas chego a crer que pode haver por aqui alguma alma perdida. zangada com a minha meditação transcendental na procura das palavras necessárias para compor textos. mas que. infelizmente. ninguém lê –até a janela. perfeitamente geométrica. enfeitada com um tapa sol da última geração. moderníssimo. a condizer com o bege quente das paredes. não resiste ao meu bafo de desagrado: falta de criatividade – não consigo escrever duas linhas seguidas – a verdade é que não sei se foi a mando do tal fantasma que. apesar de tudo. insisto em negar. ou se sou eu. desanimado. prostrado sobre os braços. aproveito a falta de inspiração para embaciar os vidros. evitando a fotossíntese. e assim. limitando os danos no vazio intelectual: evito ver a minha gaivota cinzenta. de tesoura afiada. a recortar nuvens. como o jardineiro faz com os cedros nos jardins – quero escrever. mas tudo são sombras. medos. temores. e o suor encontra nos poros a forma de alimentar a fantasia – as palavras empapam. e pela força do PH ácido desfazem-se. desprendem-se da realidade como lepra. deixam-se cair em pedaços e tudo é letra misturada. sem sentido. sem juízo. sem mão capaz de as juntar – depois. em desespero. parto como carro desgovernado; curva após curva. percebo que quanto mais escrevo mais as retas precisam de ideias lógicas – não têm princípio nem fim. mas têm que ter ideias com lógicas – resta-me pouca lucidez. e como um caminhante de mochila às costas. nunca sei onde pernoitar. nem onde termina a viagem e quando volto a encontrar a palavra-texto – às vezes. em confissão. acabo no caixote do lixo. agoniado pelo cheiro de tinta queimada. papel amarrotado e restos de iogurtes azedos – assim fico a morrer aos poucos até que outro texto me traga à vida – sobrevivo.  resisto. recorrendo ao último grande sucesso do mundo moderno e mediatizado – o medo é uma cena que a mim não me assiste. como diz o hélio: sai da frente guedes 



fernando pessoa - livro do desassossego. por bernardo soares




                                                                    fernando pessoa



"A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar"



27/08/2011

borboletas de agosto




                                                         lídia póvoa



1.

5 de agosto. o teu dia. todos têm um dia para nascer. apenas um. tu nasceste quando minguam os dias. ao contrário. em mim os dias nunca param de crescer. nasci numa primavera tua – o calor de agosto é  único. sufoca no pico do sol. mas com o cair da noite. desdobro o primeiro casaquinho de lã. agasalho-me na primeira pele. encolho a face. guardo metade dos sorrisos. arrumo o corpo a favor do vento e caminho devagar ao encontro do tempo orvalhado – a melancolia dos dias pequenos está para chegar – quando agosto acaba. setembro  surge sempre a correr. a primeira humidade toca nos ossos. a solidão começa a substituir as pessoas. e as palavras quentes acabam por desaparecer – os dias escurecem mais cedo. e o corpo recupera a memória. precisa de sombra. de silêncio. de solidão. de cadeira. de borralho. de encostar o corpo aos olhos. e rever tudo de novo. reencontrando noutro nas recordações perdidas um outro tempo – nada pode ficar para trás. nada pode ficar esquecido para sempre – um dia. sem que o corpo reconheça emoção. quando a chuva se fizer ouvir nas telhas de vidro. levo-o à janela. descubro mais um natal. sei-o porque as casas estão enfeitadas com lâmpadas às cores. desejam boas-festas num ritmo cadenciado. apagam e acendem as luzes – também tenho uma memória assim.  que se acende e se apaga ao ritmo da saudade. só não tem luz às cores. tem abraços apertados que ficaram perdidos em fotos a preto e branco  – envelheço por cada natal . envelheço por cada agosto. envelheço ancorado a um passado de palavras por dizer – o meu passado sempre foi agosto e natal. agora é mutilação. é ausência. é palavra cortada ao meio. é história sem fim – só a morte voltará a alinhar os corpos lado a lado. os nossos lados

 

2.

mas hoje é 5 de agosto. e todos os 5 de agosto são frios. ainda que o orvalho não tenha força para gelar o coração – hoje é o teu aniversário de nascimento – um pai tem sempre aniversário. mesmo depois de partir. quando as palavras e as velas com números já não iluminam. não há sopro. nem abraço. nem beijo – parabéns pai – hoje não há velas. nem bolo para as segurar de pé. nem as bocas que ensinaste a rir e que neste dia gritavam: parabéns. por muitos anos – hoje há saudade. há memória do bolo cortado em mil pedaços. dizendo que a vida é feita de migalhas – no canto do prato de vidro rendilhado. retirado da vitrina de cristais para dias especiais. as velas deitadas. apagadas para sempre. com os números tombados ao acaso – números. uns fizeram tempo. outros. nunca o farão – imagino como seria se ainda hoje tivesses aqui os olhos feitos de fé. se vestisses aquele polo azul de manga curta. com uma risquinha branca no colarinho. e repetisses aquele tique de mastigar com a boca vazia. as mãos arrumadas à calça vincada. e o corpo a rir com a crença de que no próximo ano. com a graça de deus. o sopro apagaria mais um número – os números fugiram contigo e agosto ficou ali. para sempre parado – foram as últimas velas acesas. para o teu último sopro – nesse ano. já não reconhecias os números e o sopro já não foi teu. foi nosso. fomos nós que apagamos o teu último tempo – as velas cumpriram o seu objetivo. iluminaram o momento. as últimas migalhas da vida – cumpriram o destino – tu também cumpriste o teu destino [e eu acredito no destino]. nasceste para ser doce. cor. alegria. bondade. nasceste para ser pai de família – muitas vezes. estupidamente. exigia-te mais. queria-te diferente. talvez menos açucarado. menos colorido. menos bondoso. menos gesto. menos dos outros e mais meu – mas tu nasceste algodão. algodão-doce – hoje. quando vou a uma romaria procuro sempre o homem do algodão doce. descubro um recanto vazio. fecho os olhos e espreito o passado. e lá estás tu. sempre enorme. e eu a teu lado sempre pequeno – o tempo não mata a saudade – sei que já não te lembras desse dia. mas estavas feliz. como sempre parecias estar. afinal. era das tuas mãos que nascia algodão – depois partimos de mão dada. e passo a passo. cortávamos a multidão ao meio – tu e eu num silêncio-festa. sorríamos felizes. eu levava aquele pauzinho. com o algodão colado à mão para sempre. e tu levavas ao futuro a minha mão  – hoje é 5 de agosto. tomara que te lembres deste dia de algodão. acredito que sim – afinal estás num sítio onde a memória é eterna

 

3.

agosto. 5 de agosto e o verão continua a tombar para norte. só  as noites sabem que mais dia. menos dia. todas as folhas serão chão. e o verde será castanho-ouro. e a chuva cairá devagarinho para lavar as feridas deixadas pelo tempo alegre – não há verões como antes – nos dias quentes. busco refúgio nas memórias da praia para aliviar o corpo da aflição – volto ao passado: a praia. os gelados olá com as miniaturas escondidas dos heróis da banda desenhada. o homem de branco a gritar: olha o pãozinho de leite. o furo na caixa dos chocolates regina com bolas coloridas. as barracas listadas de azul e branco fechadas a norte. os para-ventos alinhados ao mar. os corpos deitados em toalhas coloridas. com as cabeças serenas viradas a sul. e eu ali. enchendo o areal com vida. a sorrir. com a maré a ir e a vir – no passeio alegre os altifalantes acompanham com música o sorriso dos veraneantes. sempre com sugestões comerciais. especialmente para os escaldões. hidratar a pele é essencial. e para isso. nada melhor do que um boião de nívea – no ar. a bandeira verde sorri. sinónimo de banhos. o que me aborrecia eram as horas perdidas na digestão das almoçaradas de uma mãe teimosa. insistia em dizer que o ar do mar puxava corpo. tinha que comer – coisas do iodo que só havia nas praias do norte – valiam os novos amigos de verão. na partilha do relógio tartaruga. os minutos arrastavam-se lentamente até às cinco horas da tarde. hora do mergulho – no último mergulho. já sem o calor do sol. a água gélida cortava os ossos. os dentes rangiam. a pele enrugava. e o bronzeado tornava-se azul – saía da água como um náufrago sai da tempestade. esgotado com os braços pendurados aos ombros. arrastava-me pelo areal como um zombie – no cimo. de toalha na mão. a minha mãe esperava a felicidade dos meus olhos. e o calor cercava o corpo com braços quentes a rabujar: “estás gelado. já te tinha dito que saísses da água. se ficares doente quero ver como vai ser” – era assim que se era feliz – com a noite o banho quente arremessava-me para a cama. cansado. quase morto. adormecia ao som da sarronca. sinal de mau tempo no mar – mas eu estava em terra. feliz. aconchegado aos cobertores. imaginava o próximo dia e adormecia com a certeza de que a manhã traria um novo raio de sol – mas agora o agosto é março. e o sol não é o mesmo. nem a praia. nem há corpo a brincar no areal. a saudade apagou todos os agostos – naquele dia sem data [nenhuma data importa quando alguém parte para sempre] tu partiste. sabias que era uma partida definitiva. nós também – sabíamos que agosto nunca mais voltaria. o calor seria sempre uma memória de março. saudade. dor. perda – noite. na casa que era nossa. havia lágrimas escondidas em todos os cantos. cada uma tombavam de forma diferente. e o barulho não parava de magoar – os corpos dobravam-se sobre si. talvez para o chão ficar mais perto. e as lágrimas demorarem menos a fugir da dor – desesperado. pedia que deixassem de ser barulho. de ser barulho-dor. não podíamos continuar a chorar como se já não houvesse corpo para beijar – não merecíamos esta dor – esta dor vinha de tão longe. ao princípio. nem demos conta. mas depois cresceu. e por último. já não cabia nos nossos corpos –  estávamos todos a morrer há tanto tempo. e o sofrimento sempre a agigantar-se. e os olhos a cair. com as mãos rasas de força – já não tinhas energia para te amarrares à vida – noite. noite escura. e eu ali. sem poder dobrar o corpo. sem poder chorar. sem poder interromper a dor daqueles que seriam vida no dia seguinte – apesar da dor-luto. dentro dos corpos magoados. ainda éramos uma família – a minha mãe de olhos pretos. não chorava. agonizava em água. afogava-se. e eu. sem encontrar um abraço com palavras que aliviasse a dor – eu sabia que. naquela hora. nenhum abraço consola. nenhum abraço adia a partida. nenhum abraço alivia a dor. nenhum abraço mata o luto – naquela noite era preciso gritar. precisávamos de gritar. gritar alto. gritar para sobreviver ao adeus. como se a dor diminuísse com a força dos soluços – sabes pai. eu não queria chorar por ti à frente de tanta gente. não podia. queria ser como tu. forte. a tua vida não podia acabar em lágrimas. há tanto para dizer. a dor não me podia roubar a memória – nessa noite. prometi que seria forte. como tu. e terias paz. partirias. finalmente. para um lugar que te merecesse – orgulhoso de ti. aconchego o nó da gravata. sacudo o pó dos sapatos. aprumo o corpo e digo: a minha família é esta que te chora – o corpo escurecia com a noite. e o passado chamava cada vez mais por nós – não posso chorar. um dia saberei encontrar o momento certo para o fazer. hoje. não posso. a mamã precisa de sossegar. os irmãos. de reaverem o sossego. a ua. diminuitivo de lourdes. de retomar as orações. e os netos. aceitar a vida assim como é – não quero chorar. alguém tem de estar com a face limpa – sabes. pai. importante agora é saber que. depois do beijo. a mãe. a matriarca da tua casa. recobre a força para continuar a agasalhar o teu lugar. o teu perfume. o teu andar. a tua voz. a tua gaveta das meias. as tuas gravatas com nódoas que nunca reparavas. as tuas fotos penduradas – estou em agosto. e esta noite de março não tem fim. e eu sem saber o que fazer com a primavera que sempre chega por estes dias – talvez a culpa seja da escrita. das palavras. que nunca dizem exatamente o que sinto. ou talvez seja desta mania que tenho de pensar. passei a vida toda a pensar. penso por tudo e por nada. e nunca chego a lado nenhum – sabes. pai. ando perdido com o corpo às costas desde sempre. e não sei o que fazer para te dizer que gostava de ter mais boca. mas não tenho. só a uso para dizer coisas que nunca dizem nada. e os sentimentos. estes que me definham por dentro. nunca se chegam aos lábios – malditos sejam – mas está sossegado que não vou chorar. boca que não sabe falar. também não sabe soluçar

 

4.

agosto – 5 de “agosto toda a fruta tem o seu gosto” – neste dia há luto de um tempo cruel – agosto guarda a despedida como se o ontem sobrevivesse ainda dentro do hoje – o relógio não para. e o tempo envelhece. os olhos veem ainda o corpo quase quente. e as mãos trémulas a encobrir meio defunto – o tule branco aconchega a fazenda que cobre os ossos partidos pelo homem vestido de preto. disfarça marcas de dor. e recebe flores como se existisse primavera – há tão pouco de ti. a doença comeu-te. restam apenas pequenos traços teus. pendurada no lábio. a última palavra sem som. morta como tu pelo tamanho da dor – no canto dos olhos. lágrimas feitas pedra. guardam o dia em que te vi chorar pela última vez. imaginei que chorasses por mãos doces que te amparavam. mas não. choravas o adeus – sabes pai. tenho medo que um dia me roubem a memória. não quero perder o passado. quero os agostos com nome. com dor. com saudade – no meu agosto quero recordar o último momento. sentir o corpo dobrar sobre ti. o beijo a cair. e um nunca mais nos nossos olhos. os teus. fechados – quero guardar o barulho do encontro das portas a selar a escuridão. a chave a rodar e a sombra do sol caída no chão para sempre. o nunca mais feito buraco – nunca me tinhas dito que havia chaves só para fechar – sabes. pai. fui eu que guardei a chave. essa que nunca dá para abrir. nunca mais quero outra.  ainda não encontrei lugar para a sossegar.  pousei-a no móvel da entrada. quem sabe para alguma emergência – acabou. a partida era a tua. nossa libertação – acabou. agora não morres mais – os gritos passaram a descanso. o peito guardou o último ar e os olhos partiram para sempre da aflição dos que te viam – acabou. agora não mais levantarás esse braço doente a pedir socorro – acabou. morreu contigo essa dor que não parava de crescer. todos os dias ficava maior e tu todos os dias mais pequeno. definhavas. escondias-te atrás das almofadas. escudos contra as escaras – acabou. já não há mais dor a entrar e a sair do quarto. já não há mais sofrimento  nesse corpo encolhido – acabou. pai. bem sei que estavas só há muito tempo. os olhos já não guardavam a nossa voz. já não viam as palavras sussurradas. nem sentiam as festinhas feitas com a palma da mão – tudo era feito devagarinho. tínhamos medo de te magoar. nunca sabíamos se estavas a dormir ou apenas a enganar a dor – estávamos ao teu lado e não tínhamos forma de te dizer. sempre estivemos. nunca te abandonamos. todos – bem sei que partiste dentro daquela casa enorme. branca. com pessoas vestidas de branco. luzes brancas e as janelas fechadas. como se tu ainda pudesses sair a voar com uma das minhas gaivotas – tu já não querias voar. não podias. estavas cansado e o corpo já não tinha forma de se atirar ao vento – queríamos todos mais um dia. estávamos obcecados. perdidos no desespero. egoístas. e foste sem uma mão que te segurasse o último suspiro – perdoa-nos pai. mas nós também estávamos doentes – não devias ter descido à terra no nosso dia [dia do pai]. mais dois dias e chegava a primavera. e as andorinhas. e o verde. e a esperança das flores a dar cor aos campos que ainda ontem eram terra escura – se eu tivesse envelhecido mais depressa pai. se eu tivesse sido um pouco mais sábio. tinhas partido da tua casa. abraçado aos teus. que somos tantos – mas não foi assim. partiste sozinho. e agora nunca saberei se chamaste por alguém – tínhamos ainda tanto para partilhar. finalmente. eu estava a envelhecer mais depressa do que tu. mas não esperaste por mim. desististe. e eu. com as palavras presas ao tempo que não aproveitei – sabes. tenho medo do tempo. nunca tinha ouvido o nome de alzheimer. nem sabia que roubava os filhos aos pais. os dias ao tempo. as mãos aos abraços.  a boca aos sorrisos – tenho medo. tenho muito medo. não quero este nome nunca mais no futuro. não quero ver o negro nos olhos dos teus netos. e eles estão enormes. se visses como cresceram. se visses como eles têm tanta coisa nossa. tua. porque o que eu tenho é teu e por isso tudo o que temos é teu – ah. se tu um dia encontrasses uma forma de dizer que estás a vê-los crescer. eu ficaria contente. ficaria mais tranquilo – sei que onde estás só acontecem coisas boas. talvez encontres uma maneira de me dizer que ainda ocupas a tua cadeira naquela mesa feita de pão e sorrisos – nessa noite de março. não podia chorar onde todos choravam – nessa noite fiquei homem. como nunca tinha imaginado poder sê-lo de um momento para o outro – sabes. li ainda há pouco tempo num livro de lobo antunes que um homem só se torna verdadeiramente num homem depois de perder o pai – é verdade. naquela noite percebi que uma família é feita de homens de família e estas nunca acabam com as partidas dos homens – hoje somos todos cada vez mais tu – nesta casa já tens netos que brevemente serão homens – nesse dia voltaremos a falar. tenho comigo um montão de coisas guardadas para te levar. vai ser uma conversa e tanto

 

5.

nesta casa lágrimas não sossegam as horas e os corpos deambulam sem saber como esconder a dor – fugi. passo a passo desci pelas escadas que sempre fiz a correr – porquê correr se o tempo está parado – abro a porta de madeira pesada. pintada de vermelho bem-estar. tão antiga como eu. os vidros protegidos por ferro forjado. mantêm-se em harmonia com o tempo passado. resguardam o interior com  curvas e contracurvas apertadas – num dos vidros um postigo. abro-o de tempos a tempos. espreito o mundo – noite cerrada. caio na rua que sempre foi minha. não há vida no passeio das pessoas. nem carros a ziguezaguear – na rua que me viu crescer não há nada. nem tristeza. nem dor. nem lágrimas. nem flores enroladas em círculo. tudo está como ontem. silencioso. até o vento corre em bicos de pés para não ser barulho –  o silêncio é cada vez mais silêncio – as casas paradas de persianas fechadas anunciam recolha. talvez os vizinhos tenham resolvido morrer um bocadinho por ti. reconfortados nos seus sofás. isolados na dor. revivem os sorrisos com que davas bons dias. dobravas sempre o corpo em forma de vénia – havia alegria nos teus bons dias – bom dia sr. manuel. como está – e o sol caminhando para a vertical – também eu deambulo de um lado para o outro. olho o céu. a estrela polar mudou-se para trás da casa – ao cimo da rua a cassiopeia. perdida nos seus esses habituais – resistem os candeeiros de luz a cair devagarinho em chão desenhado por pedras coloridas – hoje a luz é diferente. está ali unicamente para esconder as sombras. não quer iluminar amargura. escutou a dor do outro lado da porta. sabe que o corpo está cansado e as lágrimas presas por um fio – olho o tempo no meio de nada. cigarro na mão.  a cinza cai pela força da gravidade. e a nicotina amarela-me as memórias – tudo parece que já foi há tanto tempo – sento-me no meu carro. os assentos  vazios. motor parado. o limpa para-brisas estático. luzes apagadas. o pé no travão e a vida engrenada em marcha atrás – as mãos amarradas ao volante equilibram o corpo em curvas feitas de dor. conta-quilómetros a zero –  sufoco. o peito encolhe. os olhos incham. a boca treme. o corpo vacila. o coração bate nos ouvidos e o desespero atinge as defesas de quem tinha prometido não chorar – não sei o que fazer. não há espaço entre mim e o volante para dobrar o corpo. só posso olhar em frente – estou desesperado. destroçado. devastado. com toda a força amarro o volante – a noite não abranda a dor. sei que estamos sozinhos. eu no carro perdido entre beatas e tu numa sala escura. sem deus. sem santos. sem nenhum bater de coração – não acredito em mais nada. não há deus capaz de me convencer que as partidas fazem parte da vida. que a dor purifica o homem. e todo o filho tem que sofrer como deus sofreu pelo seu. não acredito neste deus  – desespero brutal – não quero continuar em silêncio . ligo o  rádio. ouço aquela que será para sempre a nossa música. “spiritual”. charlie haden & pat metheny. e os gritos aparecem com lágrimas. eu e a música gememos sem tempo – a dor afinal também pode ter melodia – e o que ainda ontem era vida descansa agora dentro de quatro tábuas. à espera de um último beijo – um sermão. quatro lampejos de água benta. uma benção a deus. beijo. um cortejo. a chave.  com uma pá de terra tudo para sempre acaba – vivemos para sofrer e fazer sofrer – dentro do carro a noite e a dor têm agora melodia.  aqui guardarei todo o meu luto – sinto-me em paz. entre recordações e música – as notas musicais voam como borboletas. é tudo tão suave. tão doce. tão algodão e os gritos meros sopros que mantêm as borboletas a dançar – esta música foi inventada para os corpos partirem serenos – todas as despedidas são menos dolorosas com música. com o contrabaixo nascem  borboletas – os instrumentos  choram comigo. o corpo cambaleia desesperado. braços rompem aos murros o volante que já não me guia para lado nenhum. e grito. grito. grito. insulto deus. insulto o universo. os santos e os médicos. eu. insulto-me. também andava noutro mundo quando a doença destruía a tua vida pai. comeram-te o último olhar – queria tanto um adeus. um abraço e agora não resta nada. só o corpo de olhos fechados. nenhuma fotografia minha dentro  – choro. dor. desespero. raiva e o corpo sem força para resistir à promessa de encontrar o dia certo para chorar – também já não temo a morte. não cumpri a palavra. não devia chorar no dia em que as dores acabaram para ti. para nós – as borboletas só aparecem na primavera e ainda faltam quatro dias – choro. os olhos a gritar. os gemidos abafam o bater do coração – estou esgotado – choro. esta música será minha para sempre. é nosso pai. é uma música feita para fazer nascer borboletas. de todas as cores. livres. a engolir vento para rodopiar de alegria por terem nascido belas. um dia também quero ser assim. livre. a dançar de alegria por ter nascido em ti  – choro. a música. cada vez mais música. a dor. cada vez mais dor – as lágrimas continuam a cair pelas primaveras passadas. e choram os pássaros. as flores. o mar. a floresta. o cheiro. os abraços. os animais. as estrelas. as nuvens. as borboletas. o que continua a nascer nos olhos. choro a vida. choro também eu. porque vivi o suficiente para te ter para sempre dentro de mim. choro porque me ensinaste a ver borboletas. até nas noites de luto  – esta é a minha rua. para sempre. a minha casa. para sempre. e para sempre haverá uma família que chora – um dia choramos saudade. outro dia. choramos recordações – choro. hoje choro eu. amanhã os meus filhos – devem ser os filhos a chorar os pais. basta aprenderem a encontrar borboletas – deus me ajude

 

epílogo

escondo-me. apago-me. disfarço-me. calo-me. exteriormente encubro estes lados-nossos – o tempo passa. e estes lados-nossos desconhecem o tempo. feito relógio – tudo desapareceu velozmente – um dia era criança noutro outono – mas a boca inventou papel. palavra. poesia. prosa. a ampulheta marca um novo tempo – agora sei o que falta dizer – se soubesse escrever palavras aprumadas. mesmo acanhadas. seriam gigantescas. diriam tudo. e o silêncio seria abril e agosto cálido. e os lábios livres suspirariam largueza para um novo desejo: falar sem medo – mas não sei dizer tudo o que penso. o que sinto. o que faz de mim um dos: lados-nossos – não basta saber o que falta dizer – sobra o restauro do tempo estragado em forma de texto – tu sabias deste meu lado silencioso – o trabalho fez-me barulhento. agitado. determinado. ousado. e a vontade de conquistar afeição juntou-nos nas diferenças – havia tanta história de antepassados na tua boca. tanto orgulho. e eu tão longe de ser um dos nossos – tu  querias viver. eu queria vencer – agora é tarde. e as palavras que escrevo são prosas que nunca tiveram ouvidos – este silêncio maldito – o trabalho roubou-nos a linhagem – somos o que somos e já somos assim desde outro tempo. somos gerações que caminham com serenidade pelo tempo – mas a boca teima em continuar fechada e o sofrer não reconhece o corpo que carrega palavras agrilhoadas – para este silêncio não há vida na boca – no dia da terra preta. a que te protege na tua casa eterna. regressei a casa feliz. sabia que finalmente tinhas encontrado paz – também eu agora procuro paz. gostava de a encontrar em vida. não acredito. há coisas que são nossas. e nós nunca saberemos encontrar o que só aos outros pertence. estes lados-nossos. não nos deixam – descansar seria deixar de pensar –pela primeira vez em muito tempo não haverá dor em casa. e a saudade ainda é fado. música que trauteio entre a dor de ontem e o sorriso que levo dentro de mim. tão desconhecido – sinto sossego. por ti. por mim. pela mãe. por todos aqueles que te amavam – mas o tempo passou e a dor chegou. não imaginava que viesse tão depressa e as lágrimas-chumbo penduram-se no corpo – chegou o sétimo dia. o mês. o meu aniversário. o teu. o da mãe e por fim o natal e os anos a repetir sempre os mesmos dias – nada é como antigamente. nunca nada será igual. o mundo é diferente. eu sou diferente. estou velho. conheço a cor da morte. conheço os dias por onde andavas – a minha tarefa está quase acabada. os teus netos já sabem destes lados-nossos. não mais terei de te escrever – nesse dia. nesse dia de sol. de sossego. de paz. em que deixarei de pensar. a boca não será importante. serei só silêncio-paz – partirei sem palavras por escrever – deve ser bom saber que nada mais há para escrever – será bom. eu sem medo