que saudades dos natais com o meu pai. que saudades do meu
pai. não há natal sem o meu pai - há um lugar por ocupar na nossa mesa. para
sempre - sou pai. e agora sou o natal. amo os meus filhos. a minha companheira.
a minha mãe. a família e os amigos. não há natal sem amor. sem a mesa estar
completa - hoje fecho o círculo da vida. sou pai. sou natal - obrigado pai
24/12/2012
sou natal
20/12/2012
as árvores dão pássaros
um dia. há muito tempo. corria um catraio
– os calções cortavam-lhe as pernas pela metade. não parava de crescer. queria ser
enorme. crescer até as árvores lhe baterem nos joelhos e os pássaros pousarem
nos dedos das mãos – gosto de pássaros. de os ouvir em liberdade. de os sentir
nos dias que crescem. à espera da primavera – gosto de pássaros. não consigo
imaginar as árvores sem pássaros. ruy belo escreveu que as árvores dão
pássaros. eu acredito. com a idade passei a acreditar em tanta coisa: na
intuição. no cheiro. no olhar casual. no abraço das palavras. nos poetas e nos
homens tímidos que não sabem falar – eu não sei falar. nunca soube. esta
maldição de não saber dizer o que sinto irrita-me. só as árvores me mantêm de
pé. as árvores prenhas de flores. com pássaros às cores – cor esperança. cor
tempo. cor saudade. cor de gente que não morre. de gente que anda por aqui. por
entre nós. como diz o antónio lobo antunes: sei que o meu pai anda por aí – eu
também tenho a certeza de que andam por aí: o tio joão. deve andar a falar de
pássaros. de árvores. de flores. das coisas belas do mundo onde se escondem. e do
meu mundo. também – e o sol sempre às voltas e as sombras sempre a desaparecer.
e tudo o que gosto cada vez mais dentro de mim. num silêncio que dói – gosto
das flores amarelas. são da cor do sol. mas também gosto das tulipas negras. da
cor da noite – o tempo avança. regido por leis que desconheço. e todo o
presente vira passado. e o futuro é feito de sonhos. sonhos que nunca deixam de
o ser. e o medo a trabalhar como um relógio. e os segundos contam horas. e anos.
e a memória a esquecer-se que tudo não passa de uma linha reta. e o meu princípio
está cada vez mais distante do que sou agora: um triciclo. uma voz doce. uma
babete suja. um avião com luzes que acendiam e apagavam num terraço feito de
cimento. e a roupa a secar num arame. e a bola a saltar no pé. e um beijo na
boca. um abraço. um pedaço de terra a cair das mãos. e flores. árvores.
pássaros e o fim já ali. e as retas afinal têm princípio e fim –o passado é
sempre tão distante. velho. engelhado. amarrotado. só a juventude é
especialmente ingénua. bela. pura. amarela como o sol. como as flores. como as
árvores. como os pássaros – somos vida. eu
e os pássaros. somos primavera. o fruto nasce sempre depois da flor – depois.
chega abril. e os meses começam a correr. os dias grandes multiplicam-se. e os
frutos ganham cor. forma. são cada vez uns mais iguais a outros. e as laranjas
são laranjas. e as maçãs são maçãs. e os morangos são morangos. e cada árvore
com o seu pedaço de terra. e em cada pedaço de terra mais primaveras que se
fizeram saudade – é o tempo do que tem princípio e fim. tudo às cores. e
branco. e azul. e amarelo. e vermelho. e
todas juntas são quadros de van gogh. flores feitas à medida para cada tela
imaginada. e tudo sem vento. sem chuva. sem sorrisos que se possam ver – o sol
cai. tudo fica parado. exceto os calções. cobriram metade das pernas. o corpo a
tremer. as cicatrizes. e os olhos à procura do quadro feito de flores às cores que
nunca existiram – só eu sou dono das cores que vi. toda a terra que dá fruto é
sagrada. terra ventre – mãe natureza. sei que tudo o que nasce morre – estar vivo
é aguentar – aguento um cansaço que ninguém compreende. um cansaço dor – o tempo
sempre no mesmo compasso – gosto de pássaros. de árvores. de flores. gosto de
palavras que matam silêncios – perdi tanta gente que gostava. perdi dias. perdi
fé. perdi amigos. perdi confiança. perdi quase tudo o que um homem verdadeiro
não devia perder – sou agora cada vez mais mortal – resta-me escrever com o
corpo. nas mãos os pássaros continuam a descansar. um dia partem
13/11/2012
o duelo dos meus eus
quando carregamos várias vidas num só corpo. partilhá-lo
torna-se difícil – creio ser mesmo impossível. estão todos interligados. e cada
parte faz parte de um todo indivisível – o corpo está aqui. mergulhado na
escrita. no estudo. no conhecimento. no aprender. no guardar na memória. no
criar de palavras. com ou sem magia. do louco que ouve os seus próprios loucos e
o eu principal: o corpo. a escrever tudo como se fosse um tesouro – escuto o
que o corpo tem para escrever. é um duelo. 40 passos para cada lado. e tudo se
resume a um tiro certeiro – morro de alegria. as palavras são balas e as
metáforas ramos de flores que adornam a esperança – as mãos entre a vida e a
morte. esgravatam as ideias. procuram o saber de um eu obrigado a trazer pão ao
corpo todo – sem pão não há vida. e sem vida não há palavras – mas há desabafos
que são gritos para sinalizar a vida
03/11/2012
a falar com
os
elogios são sempre
terríveis para quem gosta de escrever – primeiro. tocam campainhas de
satisfação. depois. quando o corpo retoma a forma do artesão. permanece um
ruído. que mais não é do que um zumbido gravado nas mãos para sempre – o medo
de errar torna-se cada vez mais uma dor. e o trabalho. uma canseira
insuportável – o conceito do que é certo e belo está sempre preso ao momento – e
eu estou agora no momento do zumbido
01/11/2012
21/10/2012
20/10/2012
o mundo onde meu dedo aponta
a minha parceira das palavras. vânia lopes. teceu o seguinte comentário ao meu texto sophia:
A simplicidade fala como a continuação
de uma música,
mar solto... desejava que não fosse
pecado escrever assim:
com o mar solto sem nenhum grampo impedindo a brisa.
mas... 'de costas para a realidade' (é
antes de tudo um abuso)
uma disritmia aos olhos de quem lê.
de qualquer diabo: escolho essa tal de
simplicidade dos olhos,
por ser absoluto de quem olha.
por hoje obrigada, mas não sempre
porque gosto de mais e mais. beijo
respondi com amizade:
que mais poderei escrever. que mais posso
entregar de mim. para dizer que a escrita é uma caneta e um olhar que guarda corpos
e objetos no papel – tudo o que é existência
é imagem – gosto de sentir. de contemplar. de ouvir. gosto de ver o movimento
das coisas. e os bancos vazios no jardim – gosto da solidão. do silêncio dos nomes
que não conheço. e das coisas com nome – gosto mais do mundo dos outros do que
do meu – dentro de mim. a ilusão de te escrever tudo o que sinto. o cheiro do meu
mar. o sol que cai por uma encosta que nunca subi. o vento sul a roçar as
folhas de levezinho. e as árvores a gemerem como sereias. encantando os pássaros-primavera
em campos de magnólias – escrevo – e os olhos. a ver cores que não existem para
ninguém. vejo eu porque sou irracional. idiota de um amor impossível – assim
sem saber bem como o fazer digo-te: quando escrevo sou eu. os outros podem ver
mais longe. as searas estão ceifadas e o fim do mundo é ali. onde o meu dedo
aponta. ali morrem todos os que querem ser poetas. ali onde os teus olhos veem
com os meus – um mundo que não existia antes dos poetas de verdade – como faço para
te dizer tudo isto que sinto. sem boca e sem arte? escrevo como sei. e o corpo. grande. está cada vez mais carregado
de coisas pequenas que não sei escrever
18/10/2012
escrever para ser
a
minha colega sandra fonseca escreveu o seguinte comentário ao meu texto sophia:
-
Ainda hoje li uma frase do poeta Ferreira Gullar que também diz bem do tema
desse belo texto: "A arte existe porque a vida não basta". É salvação
e vida, diz Sophia. E tão bem nos traduz neste ofício, palavra por palavra, no
teu silêncio aflito e ao mesmo tempo encantado diante dessa "felicidade irrecusável.
Nua e inteira." -
respondi agradecido:
é no meu silêncio aflito que encontro um
prazer que. até há pouco tempo. não imaginava ser possível conseguir – não há
forma de me reinventar. nem de ser diferente desta vontade única de continuar a
escrever o que sinto – escrever não pode ser um sofrimento sem sentido. tem que
ser um sofrimento feliz. como diz. e bem. a conceição roque silveira – é esse sofrimento
feliz. sempre acompanhado por johann sebastian bach - orchestral suite nº 3.
que procuro na minha escrita – escrever a cada dia melhor é absolutamente
imperioso. pois só assim serei capaz de transmitir com verdade o que vivi. o
que vi. o que senti. o que sou. e o que gostava de não ser – gostava de me
saber escrever no olhar de cada leitor – utopia? sim. desistir? não
16/10/2012
a porra dos elogios
a minha camarada da escrita conceição roque silveira escreveu o seguinte comentário ao meu texto sofhia:
"Já eu acredito que há génios dentro de
nós nalgum momento da vida, ou em vários; não sei que te dizer sobre os que
tens, mas acredito que os mostras cada vez mais a cada dia, a cada texto, que
ser génio não é ser perfeito é ter essa capacidade de caminhar, seja na vida,
ou por dentro de si e isso é de algum modo felicidade. Eu noto na tua escrita
uma espécie de sofrimento feliz. Ah, sempre tive uma admiração pela poesia de
Sophia."
respondi grato:
palavra que não sei como te dizer – sei que
não lido muito bem com elogios. tenho medo. obrigam-me a algo que não sei
explicar. talvez me obriguem a ser melhor. não um não ser melhor. mas um ser
melhor trajado a rigor. assim como quem vai a uma festa de gala. na entrega de
um prémio. uma coisa importante – às vezes penso que sou mesmo muito confuso a
escrever. quando tomamos café sou muito mais povo. mais popular. mais arteiro.
mais humano. mais desajeitado para dizer coisas – mas há um elogio que gosto de
ter. de preferência muitos. às centenas. escritos. orais. sinais de fumo.
gestuais. sei lá. tudo o que possam encontrar e que faça o corpo estremecer.
que faça os olhos humedecer de timidez. e o cérebro dizer-me que ninguém chora
por tão pouco. para. guardar essa lamechice para a dor. e não para a alegria.
porque estes elogios são fruto do esforço. numa luta gigantesca entre o que
posso dar e o que gostaria de dar: tentas ser a cada dia um pouco melhor – mas
sou assim. e a porra das comparações sempre a dizer que ainda tenho que ser
mais. e que os outros são todos muito melhores do que estas palavras que
encontro para dizer que sou feliz como nunca fui a escrever – sou tão feliz que
respondo desta forma. não por vaidade. não porque gosto de textos grandes. não
porque tenha muita coisa importante para te dizer. respondo assim porque sou
feliz a escrever. porque descobri que esta é a única forma de dizer coisas boas
às pessoas que as merecem – sofrimento feliz? sim. sim porque gosto. e gosto
porque me define em todos os silêncios que encontro para escrever – sou tanta
coisa que não quero ser. e o que sou mesmo acabo por não ser – ah que raiva que
tenho de não poder escrever tudo o que penso. se soubesse. tenho a certeza de
que ficarias mais feliz. e eu mais sossegado por saber que disse exatamente o
que queria dizer. e queria dizer tanta coisa. escrever-te assim como se
estivesse a falar contigo. com os braços a gesticular. e o corpo a gemer de um
lado para o outro. os olhos a inchar e a desinchar. e eu a abanar-te.
implorando que me dissesses com os olhos que me compreendias. assim como eu me
compreendo quando estou lúcido – raio parta este comentário. e eu por aqui sem
saber se disse tudo. ou se como em quase tudo na vida. me fico pelas metades. o
que por esta idade já não sei se é defeito. ou a ambição de querer fazer sempre
cada vez mais coisas – não estou louco. acredita. nem perdi a noção do papel já
gasto. estou assim como quem sabe que a felicidade é feita de coisas pequenas.
de palavras pequenas. de maçãs vermelhas enormes. e de um mar cheio de gaivotas
que por serem donas do vento são donas do rumo que querem dar à vida – eu quero
ser feliz. só
14/10/2012
sophia - a felicidade irrecusável
não há génios. nada me dizem as palavras
quando de costas para a realidade – todo aquele que trabalha à procura da
palavra mais que perfeita. sofre – escrevo acoberto de paredes brancas. tudo é
branco. tudo menos a abertura da janela dos olhos – entre o olhar e a luz uma
maçã enorme. vermelha e imóvel brilha no tampo da mesa – na parede o reflexo
distorce a verdade – sombra – duas realidades. dois tamanhos para um só objeto –
na janela o caixilho quadrado guarda um mundo que se quer azul oceano. encoberto
por um tule feito em ponto cruz. um círculo sem princípio nem fim. transparente
– tudo o que é mar é brilho. tudo menos os barcos à vela pousados num horizonte
que a cor dos olhos desconhece – presas ao caixilho quadrado as gaivotas voam
em círculo – às mãos o trabalho. aos olhos a contemplação. ao coração o
sentimento – como artesão. de sol a sol. procuro nas palavras o fabrico do belo.
faço-o num silêncio aflito que por ser só meu ninguém sabe que existe – há
neste escrever “uma felicidade irrecusável nua e inteira”
*dedicado
a sophia mello breyner
nota
de autor:
sofhia
mello breyner aquando do seu discurso de 11 de julho de 1964. na sociedade
portuguesa de escritores. na entrega do grande prémio de poesia à sua obra
livro sexto:
“A
coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual
estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar
e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não
era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do
real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a
objetividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e
inteira, esse esplendor da presença das coisas. Eu também a reconheci, intensa,
atenta e acesa na pintura de Amadeu de Souza Cardoso. Dizer que a obra de arte
faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte
faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.”
09/10/2012
café com saudade
amora - dila santos
Café Com Saudade
Um dia provei do teu açúcar a leveza na brevidade de um beijo de amor
- iguaria que no céu da boca se derrete, qual estrela de polvilho.
...Como lembrança de uma
infância morna, o teu gosto distante visita-me a língua,
à mesa do café.
a xícara também sofre,
quebrada na borda.
*
amora. heterónimo de dila santos. colega brasileira pela qual
tenho uma grande admiração pelo modo suave e belo como encontra as palavras
para os seus textos – escrita melodiosa que abraça o leitor e o leva a um
estado de grande satisfação interior – ler-te é um abraço que não acaba nunca
08/10/2012
ocupação silenciosa
05/10/2012
escrever é um ponto sem final
há uma agitação dentro do corpo. os órgãos imploram liberdade
às palavras – não sei se alguma vez serei capaz de largar as palavras das mãos.
sem perceber o que cada uma de mim leva – tenho medo. tenho muito medo das
palavras – há tanta coisa que desconheço das palavras. são sempre tão
complicadas. difíceis. problemáticas.
com tantos sinónimos. a dizer tanta coisa ao mesmo tempo – as palavras amedrontam-me.
assustam-me. como o vento norte. que anuncia sempre mau tempo e o bater das
portas não para. e vão para lá e vêm para cá. e o corpo perdido. sem saber o
que lhe atravessa a porta – sempre que as palavras partem deixo o olhar fixo à
procura de ouvidos que as queiram colher. como se colhe o centeio da terra que sacia
a fome às bocas – e o medo ergue-se como um novo adamastor. esculpido por palavras
que levam consigo tudo o que é meu. e o corpo em mar navega com terra à vista.
em desassossego. inquieto. receoso afunila a esperança para quem as quer colher:
adota. não adota – há certezas que desaparecem entre a boca e os ouvidos de
quem escuta. e na caverna auditiva o monstro aparta as palavras. boa. má. boa.
má. e tudo é diferente para sempre: deixei partir o que só eu sei dizer e os
outros ficaram a saber o que eu nunca disse – não há lábios íntegros nem
ouvidos puros – e depois. a incerteza que nasceu comigo. tudo é difícil. tudo é
dúvida. tudo é terror. e o dia sempre a puxar para o escuro. e ao longe as nuvens
correm sempre para norte. e as mãos sempre pequenas num corpo a quer crescer mais
que as palavras – não consigo descansar da aflição de saber se o que escrevo é
verdade. a cabeça a dizer sim. as coisas no papel a dizer não – a arte do
pregador é falar. e a do escritor é escrever. e eu não sei nem uma coisa. nem
outra – porque me castiga deus com tanta palavra hesitante – a cabeça teimosa a
dizer que sim com mais força. e acena. e acena. e as lombadas dos livros
viradas para a parede. estou de castigo – um escritor é feito das palavras que
escreve. mas eu escrevo sempre menos do que desejo – e a cabeça continua a
acenar. imagino então que todos são como eu. tolos. feitos de palavras que não
existem em papel. nenhum escritor escreve em papel o que lhe cai nas mãos. aquela
sensação de calor. a falta de ar. o desassossego. os ossos a partir de cansaço.
e as lágrimas a escorrer por dentro e por fora. os olhos perdidos do corpo
lutam por cada página do dicionário. folha para trás. folha para a frente. da boca
um raio parta isto. não há sinónimo para a palavra felicidade sem esta maneira
de dizer as coisas – e o corpo reclama escrita. e escrevo resmas e resmas de
papel para dizer nada. nada que os outros entendam – e a loucura agora tem
nome. atestado por um médico – está louco. já não reage à medicação. não
consegue abandonar a obsessão de que um dia todas as palavras terão sentido
– – façam o favor de internar este pseudoescritor. não
esqueçam: colete de forças e sala branca por tempo interminável. até que faça
outra avaliação do seu estado mental –
sempre
que junto palavras invento-lhes uma nova vida. ricas. poderosas. fortes. elegantes.
viajadas. a falar francês. inglês. bem vestidas. reconhecidas e sempre a
apontar para mim – mentira. tanto quero
dizer. mas no fim do parágrafo resta apenas um ponto final – também eu tenho
que por um ponto final nesta forma de escrever. tenho que largar as palavras
tal e qual como elas me erguem do chão. não posso senti-las de uma forma e
depois entregá-las ao leitor de outra. têm que partir sem erosão. sem
polimento. sem brilho. sem maquilhagem. têm que partir do que sou. do que sinto
em silêncio. quando encostado ao pulmão coloco as pernas em cima do coração.
para facilitar a circulação sanguínea. incham-me os pés e com os pés inchados
as palavras incham também. e fico com os canais lacrimais entupidos. não sei
escrever sem chorar – se as palavras
fossem choro era fácil. uma música. uma voz. e a liberdade era a grândola vila
morena – se as palavras fossem gaivotas era fácil. um dia de sol. um pouco de
vento e a liberdade eram asas – se as palavras fossem peixes era fácil. um
oceano. uma onda. e a liberdade eram barbatanas – se as palavras fossem saudade
era fácil. uma recordação. uma foto na mão. e a liberdade era memória – se as
palavras fossem vento era fácil. uma criança. uma praia e a liberdade era um
papagaio de papel – se as palavras fossem um homem era fácil. um papel. um poema
e a liberdade eram as metáforas – não há liberdade para as palavras que
escrevo. elas são eu. e eu estou preso em cada uma delas – eu sou a prisão das
palavras. as palavras as grades da vida
02/10/2012
a patologia das palavras
“Só há uma diferença entre um louco e eu. O louco
pensa que é sadio. Eu sei que sou louco.” – salvador dali
acontece-me algumas
vezes quando escrevo um texto literário. chego ao fim sem compreender
uma única palavra do que escrevi – o corpo cai em depressão – digo o corpo porque
tudo começa a funcionar mal. cabeça. coração. olhos a lacrimejar. mãos a
tremer. sensação de temperatura elevada. boca seca. e o número de emergência do
INEM não me sai da cabeça – agoniado. aguento conforme posso. sei pelo passado
que a solução. na maior parte destes casos. só aparece com o passar do tempo – volto
a ler. reescrevo este ou aquele pedaço de texto. corto aqui. retoco acolá. adiciono
umas quantas palavras novas. e pronto. sinto-me outro. e tudo agora no corpo
são olhos abertos à segurança – o tempo e o trabalho curam tudo – mais calmo. mais
lúcido e certo de que o meu suporte de vida aguentará até ao próximo texto. caio
em mim. percebo que tudo não passou de um momento tresloucado do cérebro. um
tipo de loucura estranhíssima que geralmente ataca alguns jovens que teimam em escrever.
os loucos que gostam de passar o seu tempo livre a ligar palavras – ainda existe
muita falta de informação acerca destas perturbações doentias. de gente que
abdica de quase tudo. cinema. futebol. café. TV. amigos. sono. para escrever o
que ninguém lê – somos quase sempre incompreendidos. a
pergunta que nos colocam constantemente é porque insistimos em escrever o que ninguém
lê. ou considera inútil – não é fácil explicar esta necessidade doentia de
colocar em papel todas as palavras que diariamente explodem dentro da cabeça. fragmentando-se
em mil e uma interrogações que também eu não sei responder – é loucura dizem os
mais céticos – começo a acreditar no
jeito como esta gente nos olha. desconfiados – estes jovens que escrevem têm realmente
problemas que. aos poucos. tendem a inclinar o corpo para o grave ou muito
grave – estas anomalias ou perturbações patogénicas do cérebro. temporárias ou permanentes. cada vez mais frequentes no meio
literário. não foram ainda suficientemente perigosas para que o meio-técnico-científico dedicasse mais tempo e meios capazes de enfrentar. tratar ou minorar.
estas crises de quem quer escrever tudo o que pensa – sabe-se. no
entanto. que um pequeno grupo de cidadãos ligados à área das letras. professores.
escritores. poetas. filósofos. pensadores. entre outros. continuam à procura de
uma razão plausível para estes devaneios cerebrais – a patologia estuda as
alterações físicas e mentais. no caso dos escritores. as causas estão
identificadas. mas o meio científico ainda não reconheceu onde o gene se altera.
levando um homem comum a transformar a raiva em palavra. forte o suficiente
para gerar um texto literário incompreendido até pelo próprio autor. quando
este recupera o seu estado normal – o que se sabe. segundo os estudiosos
ligados a este ramo de desvios. é que estas mutações podem ser causadas por um
vírus. ou por erros de cópia do material durante a divisão celular. por
exposição a radiação. ou mais grave. por influência direta ou contacto com
outros seres humanos que. acometidos da mesma maleita. também escrevem coisas
que a maior parte dos humanos é incapaz de perceber – estou
em crer que este interesse. do corpo científico que estuda problemas do foro
neurológico. ao crescente aparecimento de textos que não servem para coisa
nenhuma. ainda não mereceu a devida atenção – uma das razões que aponto para
este “facilitismo” por parte das entidades responsáveis da saúde intelectual pública
a nível mundial é. a de que até à data não há nenhum ato de violência associado
aos criadores destes textos destoantes. impercetíveis. tresloucados. estes
limitam-se a levar para o papel um conjunto de palavras que não chega a lado
nenhum e ponto final – um neurónio desce pelo braço. mão. dedos e acaba morto
no fim de um parágrafo. cravado no peito com um ponto final
27/09/2012
última oportunidade
um dia.
antes de partir. voltarei à minha igreja. aquela que me batizou para o mundo
dos justos – pela última vez. suplicarei ao “meu” deus que me aceite no reino dos
homens que não tiveram coragem de morrer pregados a uma cruz – estou quase
certo de que não obterei qualquer tipo de resposta – o silêncio na sua casa é
sepulcral – concluirei que deus é surdo. mudo. e não conhece a linguagem
gestual – desconfortável com o próprio corpo. castigarei a fé cega com que
animei os sonhos – partirei. invocarei todos os demónios que acolho em mim.
cerrarei definitivamente os olhos em frente ao santo que jurou proteger-me
contra todos os males. passados. presentes e futuros. tanto da alma como do
corpo – não há justiça nos homens feitos à tua imagem e semelhança – parto. deixo
a tua casa com o sabor de uma partida amarga – sossega. não acredito na
ressurreição. como diz mia couto “o que está queimado não volta a arder”
18/09/2012
carne. lembra-te que és mortal - II
2.
gosto da palavra partida. não gosto da
palavra morte – quando partimos deixamos sempre qualquer coisa para trás que um
dia podemos voltar para encontrar. um livro. uma cadeira. uma história. uma
foto com um sorriso enganoso. um sinal que nos descreve por dentro. um gesto
calmo marcado por contornos subtis. leves. delicados. feitos de carvão abandonado
dum fogo que “arde[u] sem se ver”. e tudo isto guardado num jeito de andar que
não é de mais ninguém. de mais nada no mundo. é só meu – gosto da palavra
partir porque é vaga. verbo. verbo de ação. onde o sujeito se desloca para
algum lugar. ninguém sabe para onde. nem em que direção. mas vai – partir.
partiu. partirás. partirei. não importa a forma verbal. gosto da palavra. deixa
a ideia de quando partimos deixamos sempre qualquer coisa para trás que. um dia.
podemos voltar para encontrar tudo no mesmo lugar inacessíveis às mãos – há
gente que parte tão devagarinho que verdadeiramente nunca chega a partir. e as
imagens aqui paradas para sempre. os olhos em cima do jornal repousam os óculos
castanhos nostálgicos e o corpo a cair para a frente contraria a fotografia na caderneta
militar. capa preta. folhas amarelas. ombros em confronto com o quico caído
ligeiramente para a frente da vida. a dizer ao bigode à errol flynn que a boca anda
agitada pela procura de beijos – tudo são imagens – as pernas a fazer andar o
corpo. de um lado para o outro. um braço para a frente e outro em espera. balança
num porta-chaves alfa romeu – calça creme. casaco azul marinho apertado por uns
botões de metal dourado forte. e no cimo
do corpo. um estupor de um lenço ao pescoço. cheio de cores fortes a dizer que
a vida é consumida num carro desportivo de alta cilindrada – à cabeceira da
mesa a sombra assenta nos cotovelos. os lábios batucam desespero que ninguém
ouve. o silêncio é agora feito num caminho de memórias que já não são o
presente e o peito sente os gestos presos às cadeiras. com nomes. estamos todos
ali. todos em carne. e o ar dos pulmões cai
lentamente para um prato sopeiro vazio e a bucha de pão partida em bocados
certos como o número de lugares na mesa – a roupa do dia seguinte à espera na
cadeira. camisa engomada. calças dobradas pelas vincas com o cinto a roçar a
alcatifa. sapatos bem engraxados e alinhados pela biqueira. cordões abertos em
sorrisos à espera dos pés. e depois aquele quadro na parede diz que a vida é
quase sempre feita no outono. as folhas mortas no chão esperam por um vento que
nunca acontece. e a casa de pedra anuncia vida. a chaminé não para de bocejar
fumo que não corre – naturezas mortas de pintores que partiram. sem saber que
deixaram a vida parada para sempre em quadros de tabopan – quando partir não
quero que a minha vida fique assim parada. não me quero em pinturas com pessoas
que não vão para lado nenhum. paradas como o fumo na casa de pedra – quando
partir quero virar as costas à vida com a certeza de que para trás tudo fica
igual. continuará o movimento. e toda a gente de um lado para o outro a gastar
a vida como sabe. falam. protestam. trabalham. sorriem. fazem crescer famílias.
amam-se. recordam os que partiram felizes – quero olhar para trás e ouvir os
meus dizerem: lembras-te dos kilos de perfume com que aparecia pela manhã. como
era teimoso. raio de feitio. gostava daquele casaco preto de bombazine com cotoveleiras
de pele castanha. assentava-lhe bem. fazia-o mais magro. mais elegante. havia
dias em que nem parecia ele. aparecia tão esticado. aquele cabelo sempre a cair
para trás – mas o que eu mais gostava mesmo era aquela mania de que sabia
escrever e o like no facebook era obrigatório. disso não há dúvidas – quero
partir com a saudade a ser a razão da conversa. e as memórias feitas de corpos
sãos. corpos contentes. corpos ágeis. corpos sábios. onde o mundo roda porque
as pessoas rodam de um lado para o outro com tranquilidade por saberem que quem
parte. parte feliz – esta gente que roda sem parar ainda não descobriu que um
dia também terá de partir – gente que amo. gente nuvem. todos os dias guarda uma gota. e depois outra
e mais outra. e o corpo cada vez mais feito de água-afeto. água-amor.
água-companheirismo. água-amigo. água-vida e um dia. sem que no horizonte se vislumbre
sinal de tempestade. o corpo vai tombar e toda a água vai partir em torrente
levando tudo o que é alegria. para sempre – não há forma de as mãos segurarem
esta água. nem a dor de um corpo seco. e tudo o que foi deixou de ser. e o que
vem nunca será igual ao que partiu – só o tempo é capaz de amainar o corpo. e o
que era enxurrada transforma-se numa linha de água límpida. cristalina. pura.
como tudo o que chega ao mundo pela primeira vez caminhando pelos sulcos da
pele. de um modo tão suave que mais parece uma bailarina em pontas. a rodar
sobre si como se quisesse imitar o mundo quando gera vida e sem que se aperceba
chega ao chão como toda a água dos rios chega aos oceanos. e os pés para sempre
húmidos – entro na cama. ajeito o corpo ao travesseiro e ali permaneço quieto.
o coração bate nos ouvidos. o cobertor tapa o frio do mundo. olhos serrados.
silêncio em espera. e quando a voz
atravessa o sonho tudo é como dantes. volto a ter tudo o que tinha antes de
todas as partidas – como diz shakespeare “um homem que não se alimenta de seus
sonhos, envelhece cedo” – o meu sonho é escolher o dia da partida. não quero
morrer sem memória. não quero morrer em dor. não quero que ninguém me veja
fechar os olhos. ou me abrace em lágrimas. quero partir. partir como parte o
vento das janelas – “os covardes morrem mais vezes antes da morte; o valente
experimenta o gosto da morte [partida] apenas uma vez" – gosto da palavra
partir porque imita as andorinhas. o fim do verão. uma nuvem no céu. uma gota
de chuva apanhada pelo oceano. um vento fresquinho. e o bando parte em fuga
para uma vida melhor. para o sul quente – a esperança está de volta. novas casas.
novos telhados. novos caleiros. novos fios elétricos. novas árvores. frutos sem
nome. e um novo mundo. um novo recomeço prometido pela intuição de saber partir
à hora certa – gosto das partidas de quem acredita que há um mundo novo à sua espera. diz-se que para encontrar este novo mundo é
obrigatório partir pela vontade de deus – confesso que não sei muito bem se
assim é. já muitas vezes escrevi que a minha relação com deus não é a mesma
desde o dia em que o meu pai morreu. não partiu. morreu como morrem os cães
abandonados. cercado de gente branca sem nome. sem memória. sem semelhanças.
sem uma mão que o ajudasse a partir como o vento por aquela janela que dava
para o mundo das andorinhas – morreu. gelado. sozinho. perdido no escuro. onde
a luz não existe. podia ter partido. mas não. morreu. morreu ele e morri eu e
tudo o que escrevo é agora pela revolta de saber que não quero morrer assim. nunca.
quero partir – junto todas as minhas coisas numa mala pequena. uma camisa
branca. um casaquinho de lã que me aconchegue o corpo às memórias. uma gravata
preta. uns sapatos de sola de borracha porque não gosto de sentir os pés frios.
um par de lâminas. gosto de ter um ar asseado. sempre ouvi dizer que um homem
de barba bem feita não necessita de roupa. um aftershave. umas quantas fotos. um
livro. nem sei bem qual. talvez em branco. assim poderei escrever de novo todas
as palavras que ninguém compreendeu. dar-lhes outro trilho. outro rumo. com a
caneta mais inclinada para sul. mais sol. mais calor. mais mar. mais gaivotas. mais
esperança. juntá-las a outras que ficaram esquecidas nas mãos. e por fim
reescrever-me. de novo para dizer exatamente o mesmo. eu só sei escrever o que
sou – a escrita não muda o homem. ensina-o a ver-se tal e qual como é –
pensando bem talvez alterasse esta mania de escrever na primeira pessoa e
passasse a escrever na terceira. diria então: eles pensam que são donos do
tempo e depois partimos. partimos sem destino. para sempre – parto. para trás deixo
o corpo. fica como sempre foi. grande. firme. hirto. com o cabelo empastado em
gel superforte. e o cheiro ao perfume jean paul gaultier a dizer em voz grossa:
sou vaidoso. até já. até já. não se esqueçam que não morri. um homem não morre.
parte – como dizia lucan “os deuses escondem dos homens a beleza da morte
[partida] para levá-los a aguentar a vida” – mas ainda não parti. ainda ando
por aqui a desiludir – estou debilitado. desalentado. desanimado. desgostoso. estou
exausto. tão cansado que as palavras já não se amarram ao papel. tudo o que
penso ou escrevo parte em busca de descanso e o corpo ainda aqui. quase
moribundo. e as palavras por dentro a sofrer num lugar que já não conheço.
escuro. tão escuro que já não consigo ver com clareza o que dizem – estou
desesperado nesta certeza de partir. gostava de ter dúvidas. gostava de estar cortado
ao meio. não estou. estou inteiro. firme. pela primeira vez todo eu sou
certeza. todo eu sou partida – tenho medo. ainda amo tanta gente – partirei
então como uma andorinha. descubro esse outro lugar onde a vida é vivida sem
interrogações. sem esta dor que me nasceu num canto qualquer do corpo. eu nunca soube onde e as mãos por dentro a
revolver tudo o que sou e cada vez a encontrar menos de mim – estou cada dia
mais sozinho. estou cada dia mais parecido com aqueles que já partiram. branco.
gelado. lábios colados com cola. ossos partidos. velas. fumarolas. os anjos
cantam a canção dos rejeitados: não aceitamos traidores. não aceitamos. não
aceitamos – silêncio. e o corpo sem uma única
lágrima. coberto por um tule que já não tapa coisa nenhuma. nem desespero. nem
revolta. nem raiva. nem saudade. nada – em cima. em forma de cruz só a honra brilha
como o ouro a palavra foi cumprida. sempre cumpri com a minha palavra. é de
família – finalmente o céu dos céus. o jardim dos jardins. o lugar onde aqueles
que partiram esperam por aqueles que livremente decidiram partir. a colina dos
reencontros – fernando pessoa dizia: “morrer é apenas não ser visto. morrer é a
curva da estrada” – eu digo: partir é apenas não ser visto – partir é a curva
da estrada
12/09/2012
gula II
1.
“Oscar Wilde lá dizia que resistia a tudo menos à tentação.
Mas este assim ficou monástico, misterioso.”
2.
Como nos deixa curiosos assim?!!!
Vou deixar-te um poema de gula, para pecares de vez:
Delicioso Pecado
Satânico é o meu desejo
De despir seu corpo
Naquela manhã ensolarada
Tirar da minha boca a fome
Dos seus sabores
Olhando pra você
Enquanto lhe desejo
Desfaço da sua pele
Em suaves descidas
Até que se mostre
Eu lhe mordo a ponta
Até chegar o fim
Do meu prazer
Saciando o mel
Da forma em riste
Da banana que comi
Até o fim!!
não resisti e escrevi:
misterioso? não. nunca – não sou homem de mistérios
– escrevo-me em papel para dizer o que não sei falar – escrevo-me em papel para
dar mais horas de luz aos dias – escrevo-me em papel para me convencer que o
coração tem razão para continuar a bater – escrevo-me em papel porque a escrita
é como um analgésico para uma dor incerta. uma dor que talvez nem exista –
escrevo-me em papel porque. quando escrevo. penso. e logo existo – escrevo-me
em papel porque as palavras obrigam-me a gostar de mim tal e qual como sou –
escrevo-me em papel porque. quando escrevo. sou muito mais do que homem. sou
todos os homens e coisas do mundo. sou gaivota. mar. planta. pinheiro manso.
musgo. terra. pó insignificante. porque todo o pó é insignificante – escrevi sobre
a gula por ser covarde e não saber falar. por não saber contar o tempo. as
palavras. nem perceber o seu valor quando o homem está possuído por este pecado
– escrevi a gula para evitar lançar alguma palavra de que me pudesse
arrepender. e como diz o provérbio chinês: a palavra e a flecha lançada não
podem voltar atrás – comi então todas as palavras do meu mundo. não falei. não
pequei – tudo o que não disse. engoli. digeri. e no silêncio encontrei razões
que o coração desconhecia – de homem cobarde fiz-me homem sensato – engoli
todas as palavras do meu mundo e o mundo não notou a falta de nenhuma – não
existo para o mundo. existo para mim. e é para mim que escrevo – será que alguém entende o que escrevo? não
acredito – ainda bem que não há inquisição
31/08/2012
27/08/2012
o verbo e o profano
e que faço agora com o teu pedido. não é
justo. mas não é mesmo. sempre a embaraçar
a vida do corpo que gosta de escrever – e eu perdido nesta escrita maluca. coberto
por roupa esfarrapada – ainda sou um emaranhado de coisas que nem sei se
existem – às vezes não sei ler. outras. não sei escrever. e também não sei
ouvir. fico perdido de mim – quando me encontro. vejo-me a contemplar o que já
passou. digo: imagino porque não sei por onde me perdi – o tempo é uma coisa
estranha. andamos sempre encravados nas suas roldanas. mas no alinhar dos
ponteiros. na hora de todas as verdades. percebemos que a carne foi comida. e os
ossos estão presos por um fio. cobertos por uma pele enrugada. engelhada. encarquilhada
– é o desânimo. o corpo cai no silêncio. e o desespero é agora uma folha de
jornal de um ano que já não temos em memória. as novidades são velhas. desfeitas
pelo tempo. e as palavras outrora lustrosas. esmorecem sob os ultravioletas. algumas
rasgadas. digo: mortas para sempre. e quando queremos relembrar um pedacinho de
uma história. é tarde. desapareceu no tempo. para sempre – o desespero de nada
serve. o desaparecimento de palavras não tem remédio. resta a resignação –
paramos então pela primeira vez no tempo certo. o tempo da meditação. da
reflexão. arrastamos o certo à coluna da direita e o errado à coluna da
esquerda. o deve e o haver. e as contas são agora feitas com a ajuda dos dedos:
e vai um. e vai nove. e vão sete. e vão sete e tira um. e tira nove. e tira
dois. e tira três. e a verdade do tempo gasto aparece sem magia. cru. e sem necessitar
da prova dos nove – agora só me resta fazer um acordo de cavalheiros com o
tempo. amarrar nas recordações. ano por ano. uma a uma. sem pressa. sem prazo. e
voltar a descobrir tudo com um novo olhar. um novo toque de sensibilidade. com
um pouco mais de sabedoria. a exigir responsabilidade ao tino. para finalmente restaurar
o que restou das memórias perdidas – calmamente. reconstruimos as cores. as
palavras perdidas. os abraços esquecidos. os afetos. os cheiros. os lugares. e
os olhos pregados ao presente preparam o futuro com cautela. voltam finalmente a
dizer coisas em silêncio. e o tempo deixa então de ser tempo humano. onde tudo
é inexplicável à luz da física. e tudo é agora presente presente. e o tom da
pele. a voz. o riso e até os nomes voltam a fazer sentido. e o farol acesso. e
o caminho é a ponta do dedo a dizer: sou dali. dali mesmo. onde tudo se explica
pelo amor – é possível restaurar pedaços de tempo. recuperar parte do que
perdemos. mas nunca voltará a ser como foi. como com a gata borralheira. à
décima segunda badalada a carruagem volta a ser abóbora. e o sapato de vidro
perdido na correria do tempo nunca mais encontrará o seu pé – demoramos anos a
carregar coisas para dentro de nós. e o corpo a abarrotar de saber. de sobranceria.
de vaidade. de palavras. de tanta bugiganga que sabiamente encaixamos em
espaços ínfimos. e tudo é ouro. e tudo é valor. e tudo nos pertence eternamente
– esta é a maior mentira. crueldade do tempo. que no dia certo faz questão de nos
mostrar com dor como estamos errados. de um dia para o outro tudo é um vazio.
um deserto onde o único sentimento que sobrevive é o nosso arrependimento – há
partidas que nos deixam vazios para sempre. restam-me as palavras que ficaram
por dizer. e são elas que ecoam no vazio do corpo – agora sei que ainda sou eu.
sou uma luta contra o tempo e abrigo uma vontade enorme de um dia partir sem
uma única palavra por dizer
nota
de autor – “o que a Bíblia já sabia…” texto dedicado pela minha companheira
vânia lopez ao meu texto “ainda sou” – em gratidão escrevi este meu texto /
comentário – obrigado vânia pelo teu excelente e carinhoso poema – há entre nós
uma estima que apenas o sagrado das palavras compreende
o que a Bíblia já sabia...
ah, se eu pudesse
desfronteirar o verbo e o profano
semicerrar os olhos no apocalipse
amansaria léguas de bem querer
de seus lábios que reclamam
e fazem crer em Deus novamente
ah, se eu pudesse
ensinar a memória das palavras
na rota da tua boca messalina
viver o tamanho de um isso
escondido no meio do ar
fazendo o violino cantar
até que dele possa tirar o último
sorriso
ah, se eu tivesse
a sacra palavra
como hóstia na língua
confessaria em uma folha de papel
coisas esquecidas
falaria alto junto ao guia das ruas de
São Paulo:
“Arrume todas as nossas coisas,
é hora “de fazer cumprir a lei”
vânia lopez
25/08/2012
chove feio
a chuva e o frio entraram-me fundo no
corpo – em frente. a janela. entregue a uma película de água escorregadia. deixa
passar suavemente a noite feia. batida pelo vento – chove feio – não há forma
de escapar a uma noite assim com uma chuva assim. ficamos então também feios. tornamo-nos
inverno. as mãos gelam e o coração começa a bater em retirada para um agasalho
tecido no silêncio – e todos aqueles que partiram regressam – falta o pingo no nariz. as meias de lã. e
aquele esfregar das mãos. uma e outra enrodilham-se. cruzam-se. esfregam-se.
fazem calor. suportam-se e partem. cada uma para seu lado – retomo a escrita.
acelero as palavras. e a fábula da cigarra e da formiga muda de forma – sempre
gostei mais da cigarra. arteira. manhosa. astuta. esperta. atiçada. enfim. com
todos os predicados para um dia contar as suas próprias memórias – então. para
afastar a maldição das noites de verão feias. escrevi este desabafo noturno a
que dei o nome de “chuva” – a minha interrogação é se o título não deveria ser “chove
feio” – também eu me sentia feio e afundado na chuva
24/08/2012
chuva
hoje. na minha cidade chove feio. tão feio
que parece inverno – e eu imerso nesta chuva feia – a fortuna foi ter feito de cigarra.
amealhei um pouco de sol quando era tempo – e a formiga cigarra? não sei.
talvez esteja agora a juntar chuva para quando vier o sol - veremos. mas algo
me diz que sim
salomão
nada será igual – não tenho dúvidas de que
o silêncio faz de mim alguém melhor – hoje. este silêncio. ao qual me habituei
a ouvir. disse-me de forma crua o que já sabia: não há boas famílias sem
grandes sacrifícios. não há bons filhos sem grandes sacrifícios. e não há amor
sem grandes famílias e grandes filhos – saber escolher o mais certo. no momento
certo. é capital – não basta inteligência. não basta ser melhor. não basta abraçar.
não basta rir. não basta fingir que está tudo bem. não basta. é necessário que
nos façamos acompanhar sempre de bom senso. juízo. siso. perdão. mas. acima de
tudo. de gratidão – ninguém pode ter o
sol na eira e a chuva no naval. a vida não é uma festa diária. nem o telhado de
um lar se estende sobre todo o mundo inteiro – em nossa casa. somos sete à
mesa. sete pratos. sete copos. sete cadeiras – setembro está aí
08/08/2012
e assim comecei a escrever
escrever foi a minha maior descoberta. tão
importante como o fogo para o homem pré-histórico. para mim. reforço – a partir
do momento em que comecei a escrever. ganhei voz. corpo. volume. e trouxe por
fim algum descanso ao silêncio barulhento que habita comigo este pré-cadáver –
no entanto. este ruído que só eu sei ouvir. não para de me lembrar que. por
mais palavras inventadas. fabricadas. engendradas. este não silêncio terá
sempre o seu lugar cativo no meu desespero. mesmo que eu teime em tornar a
minha descoberta na solução de todos os males – bem sei que sou ainda egoísta.
interesseiro. talvez até de mau carácter. pois escrevo sobretudo para mim – mas
isto está a mudar aos poucos. um dia destes. acordo diferente. não sei se
perdido ou encontrado. passarei a escrever tudo o que deslindo nos outros e não
mais o que esta carcaça guarda – penso que isto não seja possível. mas. por
agora. façamos de conta que sim – por isso digo para mim. escritor de meia
tijela. escrever é um ato de desespero. em que a minha verdade se prende às
palavras que chegam ao papel – escrever é fazer sobreviver um corpo muito para
além de uns lábios que só sabiam beijar. dizer obrigado. nomear a alegria. ou
simplesmente reconhecer presenças – confesso que gosto deste falar silencioso
das palavras – ainda não há terra à
vista. mas o tempo corre sempre a favor dos náufragos. quanto mais tempo
conseguir manter as palavras à tona da água. maior chance há de que estes
textos sobreviverem ao seu autor
06/08/2012
ainda sou
5
de agosto. tu.
sentado nas traseiras da casa. na aldeia.
rodeado de gente em dor – mais um aniversário passou sem vela acesa – nos ouvidos
guardo o som do último beijo de parabéns que te dei – com os olhos desarrumados
pelo tempo. tentei encontrar em ti um pedaço quente
onde deixar o calor dos meus lábios. estavas gelado. perdido na escuridão do
corpo e já não conhecias nada do que era teu – eu era teu. sou ainda – estávamos
os dois dispersos. tu pela doença e eu a fingir que tudo era apenas um resfriado
– as palavras trémulas já não remendavam a mentira com que cantámos esse feliz
aniversário. com muitos anos de vida e muitos amigos – todos sabíamos que seria
o último ano. menos tu. tinhas sido pilhado do saber – parabéns. pai. cantarei
em silêncio sempre o teu dia até que também me pilhem as recordações que guardo
de ti – às vezes imagino que chamas por mim – e eu vou. sem hesitar…
03/08/2012
02/08/2012
carne. lembra-te que és mortal - I
exposta no museu alemão da higiene em dresden
– não me foi possível identificar o pintor
1.
este mundo não me larga e eu não sei o que
fazer com tudo o que está dentro dele – acredito que a morte é a grande
libertação do corpo. como diz hamlet: “a morte é um sono sem sonhos” – não há na
morte nada de trágico. o destino certo de quem nasce é morrer – a morte é
também descanso. serenidade. calma. silêncio. e eu sempre gostei do silêncio
calmo – faz tempo que não tenho. nem onde deitar a cabeça. faz tempo que não
tenho um sono inteiro – o que mais me aborrece na morte é que aparece quase
sempre sem avisar. disfarçada de desastre ou doença. como se não houvesse
outras formas de levar o corpo – não gosto deste formato de levar o corpo. soa-me
a cobardia. deslealdade. traição. ninguém merece morrer assim. rápido. com o
corpo em ferida – depois da voz morrer com o corpo. sei que já não será
possível reclamar. protestar ou escrever um manifesto antimorte. falo apenas da
morte covarde – protesto em vida. bem sei que já não é uma vida plena. uma daquelas
vidas de forcado. com o barrete campino caído para sul. peito para fora. mãos
na cinta. pés a arribar. enquanto os olhos emparelham com os gestos e a voz
engrossada pela inconsciência desafia a morte. e os pés para trás e para a
frente. e o peito a arfar de força. e as mãos a fazer ranger os ossos da cinta em
sobrançaria. e o desafio sem contar o tempo por ter a certeza de que a morte só
traz glória – mas o tempo passa. mesmo que no pulso a ampulheta seja agora uma
pilha automática. capaz de fazer reverter qualquer pedaço de tempo que não seja
real. e os ponteiros girem então em sentido contrário ao do relógio. e de
repente. 2012 já não existe – estou na idade das trevas. acusado de bruxaria
por ousar fazer desaparecer o medo da morte – o medo de todos aqueles que
viveram tempo suficiente para desistir de rezar – enquanto a água benta tenta
apagar o fogo que me consome a alma. grito bem alto. para que fique cravado no
tempo que ainda há de chegar. que a morte é insolente. malcheirosa. víbora. ingrata.
sim. ingrata. porque precisa de gente viva para poder sobreviver – só há morte
porque há gente viva. e sendo assim. a morte deveria levar os corpos com
dignidade. morrer de corpo são. sem dor. sem arrependimento. sem aquela
sensação de que perdemos a vida e não somos também merecedores de uma morte
justa – o direito à vida é também o direito à morte. porque a morte faz parte
de a vida – viver deveria ter esta opção. principalmente quando percebemos que
o que fazemos é já uma subtração ao que conseguimos somar – partiríamos então
em paz e sem sermos banidos do céu. ou excomungados por uma sociedade que se
limita. na maior parte das vezes. a ver morrer – deveria ser permitido que cada
corpo escolhesse o dia da sua partida
31/07/2012
santos. anjos e bicicletas
em
tempos acreditei em
deus – era criança. e por cada pai nosso rezado ao cair na cama. os sonhos surgiam
feitos de crença. o sol despertava com tanta força dentro de mim. não colher a
esperança da água batismal era o verdadeiro pecado – acordar sem pecado e
crescer para pecar – hoje não acredito em nada. e quando digo nada. é mesmo
nada – deus esbateu-se nos ciclos do nascer e morrer dos dias. e com ele. os
santos milagreiros: o advogado dos dentes. que me tirou uma dor. o dos cravos.
que numa manhã infantil. fez desaparecer um cravo enorme da minha mão. o das
causas impossíveis. a quem tantas vezes me apeguei para me salvar de encrencas.
o da memória. para lembrar que um erro não se comete duas vezes. e santa
bárbara. a santa das trovoadas. para que deixasse de temer os raios que iluminavam
a igreja do carmo. ali ao pé de casa – e
outros tantos. esquecidos por nunca me terem feito falta – mais tarde esqueci
os anjos. o primeiro foi o da guarda. que ao deitar me fazia repetir três vezes
a mesma oração. por medo que uma só mostrasse pouca fé para um anjo que devia
estar sempre em alerta aos perigos que um catraio é capaz de inventar –
confesso que na altura tinha medo de zangar o anjo da guarda. importante demais
para ser ignorado. aparecia em todos os livros da catequese. e mesmo nas
igrejas estava sempre presente na maior parte das telas pintadas a óleo.
preenchia as paredes ao lado de todos os santos. e na minha igreja. estava
mesmo ao lado da nossa senhora. num dos altares mais importantes dos devotos –
ainda me recordo de ouvir dizer em casa um provérbio que sempre me deixou a
pensar: ao menino e ao borracho põe deus a mão por baixo – eu queria ter este
deus por perto. queria o meu anjo da guarda a meu lado. precisava dos dois. para
crescer devagar e em segurança. não os podia zangar. porque zangados podiam
atirar-me abaixo da bicicleta que um dos meus amigos me emprestara. e se partisse
a cabeça destruía a esperança de que o meu pai. mais tarde ou mais cedo. acabasse
por me realizar o sonho de ter uma bicicleta só minha. uma onde eu pudesse
pedalar para lá das montanhas da minha cidade. eram altos para a idade. que eu
nem sabia ter. mas não me saía da cabeça subir ao cimo daquelas colinas com a
minha bicicleta – mas as pernas não paravam de crescer e eu rezava. fazia o
correto. tentava sempre ser justo. sempre a ver os defeitos e nunca a valorizar
as virtudes. queria ser todos os dias melhor. queria crescer. queria ser livre.
queria ser dono da minha vontade. seguir para onde o corpo me levasse – rezar de
nada serve quando deus não te quer ouvir – nunca caí abaixo da bicicleta. mas
também o meu pai nunca caiu daquele medo que mais tarde entendi ser amor –
nunca me deu uma bicicleta. e morri um pouco de tristeza – talvez para os filhos o melhor seja mesmo
morrer a pedalar de felicidade – aos meus filhos dei-lhes bicicletas. sei que
tudo é ainda igual ao meu tempo. só os montes cresceram. hoje são mais difíceis
de transpor. as estradas mais perigosas. mais traiçoeiras. mais curvas. mais
tudo que. por já ser velho. me foge ao nome – mas nem tudo é pior. sigo atrás a
empurrar. a pé. mas feliz por vê-los pedalar as bicicletas que lhes dei
-
anjo da guarda
minha companhia
guardai a minha alma
de noite e de dia
-
anjo da guarda
minha companhia
guardai a minha alma
de noite e de dia
-
anjo da guarda
minha companhia
guardai a minha alma
de noite e de dia