.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

28/07/2010

será o dia do tudo ou nada








pedi a uma cigana que me lesse o futuro. olhou para mim. desconfiada. tirou um espelho do bolso e colocou-o diante dos meus olhos – riu-se – perguntou-me o que eu gostaria de saber que não tivesse visto no espelho – queria apenas saber se existia para além do meu reflexo – ela riu-se ainda mais – deixou-se cair entre as mãos e. pelo nó dos dedos. ecoaram gargalhadas engolidas por um ventre cheio de saber – pediu-me a mão. entreguei-lhe a direita. aquela que escreve as noites – chamou-me aldrabão – disse-me que. dentro daquela mão. nada existia para além do momento que faz o próprio momento – pediu-me a outra mão. a esquerda. aquela que sempre guardo no bolso das calças. com medo de perder a identidade – sentámo-nos num banco de jardim. com vista para uma cidade que guarda o livro do meu batismo – foi ali que. um dia. um padre me mergulhou em água que viera dum poço de desejos que não o era – a seguir. ungiu-me. fez-me o sinal da cruz. que mais não é do que a cruz de alguém que partiu pelo peso da dor – abri a mão. suada. trazia impressa a marca das unhas no seu interior – há tanto tempo que estava fechada – tenho medo. sei que é com esta mão que posso perder a vida. posso perder o passado. é por ela que existo – no dedo mindinho. há um terraço com os meus primeiros passos. ainda hoje é lá que moro sempre que quero ver as pessoas perdidas – um dia. naquela bola vermelha que outrora chutei para um lugar que ainda não descobri. encontrar-me-ei – hoje sei que era o futuro. perdi-me dentro daquele chuto – olhou-me. destemida. entrou com os olhos na palma da minha mão. dentro das linhas da vida. encontrou a morte. disse-me que estava perto – matou-a com uma reza de esperança – abriu um sulco para uma nova vida. feita com a alma de um antepassado que vendia toalhas de rosto numa feira às portas da desgraça – os vocábulos eram comidos pelos ouvidos. a ladainha sorvia a realidade. as palavras nasciam aos milhares da palma da minha mão. era como se. naquele pequeno espaço. eu tivesse a odisseia de homero – fitou-me mais uma vez – pela primeira vez. percebi que o seu sorriso era. afinal. uma contração de dor – inclinou-se sobre o indicador. talvez tivesse umas glosas nas bermas deste dedo. com letra de rascunho. e. por fim. disse-me: morrerás com as palavras a nascer dentro de um nada. será o dia do tudo ou nada



23/07/2010

do amor matar - [dueto com margarete]






andei por aqui. deambulando. enlouquecendo – mais tarde. disfarcei a noite com música. melodias que o ouvido guarda do tempo do gostar. por mim passaram as ruas. com algumas tive conversas pequenas. disse: boa noite. sorriram – voltei a falar. disse: bom dia. fugiram. tinham horas para cumprir. eram loucas pelo rigor de quem lá passava para despir a vida – construíram. num canto da rua onde. em tempo. havia a campa de um sonho que já foi esperança. um relógio sem ponteiros. e traziam mulheres pesadas nelas. mulheres que queriam correr, mas as peles, flácidas, pesavam-lhes para o chão. também com elas falei. pouco. porque encontrei mais à frente uma estrela do mar, tão bonita! cabelos cor de vento, coração d'água. não tinha boca, quis dar-lhe a minha. respondeu com um gesto. um gesto desenhado num céu. que trazia embrulhado num lenço de mão – dentro. guardava as últimas lágrimas. aquelas que. um dia. a sua mãe lhe pedira para levar a um mundo onde fossem capazes de formar um rio. disse que a amava – madrugada já quase manhã. olha-me como quem olha o mar bravo. o coração inundado. mãos de fora do corpo, à espera. abraço-a. porque sei que as memórias que semeio são lugares onde ficar. para sempre. até de manhã falei-lhe do rio que haveríamos de fazer. no colo desapareceu- me com a primeira luz mais forte. chorei. deixei cair as mãos dentro de mim. segurei o coração. a dor era forte. queria morrer – tem que haver uma forma de voltar a nascer. quero voltar á posição fetal e voltar a ouvir a voz do meu pai. encostava a boca ao meu ouvido e dizia que um dia seria uma sereia – dona de todas as estrelas-do-mar



autocarro 02.07am









num dia qualquer. apanhei um autocarro. o 02.07 AM – ia sem destino. para mim – todos os outros passageiros pareciam saber o propósito daquela viagem. eu não – algo naquele número me atraiu. o 02.07 AM. parecia-me bem para número de autocarro – em boa verdade poderia ser 072ma. 702 AM ou talvez 2.07 AM. mas não. era o 02.07 AM – parou em frente a um precipício – o motorista. homem com uma farda que levava duas asas bordadas sobre o coração. abriu-me a porta. olhou-me com os olhos fechados. e ouvidos nas mãos. como quem teme as perguntas. “disse-me: espera. mas não desesperes pela tua hora. mais tarde ou mais cedo alguém te virá buscar” – estava sem horas. possivelmente deveria ter apanhado um relógio com AM. daqueles que são feitos no japão. têm os números vermelhos como olhos do demónio que mora na rua 02.07 PM – vive no outro lado de mim. escreve poesia nos dias em que os defuntos são encaminhados para o céu - gosto deste demónio. sei que no fundo não é mau rapaz. gosta apenas do inferno. penso que já nasceu dentro de um inferno. agora. já não se dá sem aquele mal-estar que o faz escrever coisas infernais – raramente o ouço. com o tempo tornou-se silencioso. sabe sofrer para si. anda entretido com aquela mania de escrever os versículos satânicos de almas deprimentes – um dia. um anjo vestido de fato. enviado por um ser que toma conta de todos os homens felizes. “veio-lhe dizer”: pousa a caneta. nem todos nascem para carregar o peso das palavras. talvez lhe arranjasse um lugar numa associação de benfeitores do mundo. junto àqueles que não sofrem o pensamento - mostrou-lhe as mãos. manchadas de negro. negro carvão. e aproximou-se e sussurrou: já não sei escrever com caneta de aparo de ouro – este demónio. já só reconhece as letras. que tal como ele. contorcem-se em silêncio. não pelo tempo que a viagem do 02.07 AM demora a fazer. mas porque está sem horas e vê o tempo a passar – e o precipício sempre ali. mesmo ali. à frente do tempo



21/07/2010

também terás um lugar











para mar.

…não adianta. todas as minhas palavras serão diminuídas pela leitura do teu texto – não vou mais escrever. vou apenas olhar cada imagem que me cravaste aqui no canto dos olhos – o barco – nem me disseste a cor do barco. possivelmente porque me imaginas gaivota. ou daltónico. inábil para distinguir o verde esperança que trazes quando escreves – talvez não me consigas imaginar a remar. com dois braços de chumbo. ou então. sem coração. incapaz de ver uma estrela que sabe apontar o futuro – mas o barco que me deste é de papel. tem impressas as tuas letras. as tuas histórias. a tua vontade de dizer. em cada palavra. que o mundo. afinal. também deveria ser teu – este barco. é como aqueles que no passado eu fazia na escola com uma folha de jornal. de um dia onde nada se tinha passado – o jornal é sempre passado. como estas palavras quando chegarem a ti hoje. serão o ontem de mim – mas descansa. a rua que tem o poste de eletricidade com o teu nome. é também a minha rua. e dessa rua. eu tenho tanto para te dizer – foi lá que encontrei uma pena e um tinteiro. obrigava-me a escrever todos os dias – prometo que vou escrever um lugar onde tu possas descansar. um lugar com gaivotas.

 



o teu lugar -





margarete. chamem-me mar




"A minha Alma, fugiu pela Torre Eiffel acima,
- A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões
- Fugiu, mas foi apanhada pela antena da TSF
Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas…
(Em todo o caso que belo fim para a minha Alma)!..."

ao s.

tenho para ti um barco. atracado num poste de electricidade. estacionado no passeio da rua mais antiga que esta cidade conhece. está cheio de pedras e conchas e sal e ondas e mar. e ainda tem, com vida, uma estrela, que dança no fundo como uma odalisca. a estrela conta tantas histórias que os que passam por ali se demoram, ouvido encostado ao casco. um dia ouvi-a falar de um lugar onde as árvores cresciam para o chão e a água dos rios corria para o céu. onde as pessoas andavam de bruços no sentido contrário aos ponteiros do relógio. era um lugar com vista para os teus braços, sei-o hoje. este barco, que tenho para ti, tem o casco quase podre. quando morrer haverá um mar na rua mais antiga que a cidade conhece. nunca mais será a mesma. até lá procuro o lugar onde atracar o coração.

texto de uma amiga margarete, mar como ela gosta de ser



19/07/2010

o berlinde e o talvez




 


desviei o olhar para o chão e fui reconhecido por uma gaivota cinzenta. que viveu no meu mar no passado. conhece-me o rosto. e o que levo no seu interior – este rosto. que apodrece no tempo. já não quer mais o que trouxe do passado – não sei se me quer voltar a falar ou apenas rir do que ainda carrego em mim. talvez as duas coisas… talvez – se soubesse o peso que esta palavra representa para um rosto atormentado. talvez ninguém mais a usasse o talvez – talvez algum profissional linguístico a proibisse de ser usada. a agrilhoasse. ou a lançasse ao meio do universo para transformá-la num cometa. e assim. talvez eu fosse levado por uma onda gigante. e talvez me tornasse num peixe de olhos azuis. um peixe de mar só meu. com as mãos ainda maiores que a indefinição do talvez. e definitivamente me perdoasse – mas também já não me interessa. soubessem vocês. que tenho agora o mundo ao colo. amarrado às origens que são minhas. e no bolso. um berlinde que trouxe de um passado onde o rosto sorria – o problema. é que com a sua transparência. dá para ver o futuro que um dia terei que enfrentar – tenho medo. a minha esperança é que o berlinde se transforme num peixe que respire no mar e no ar. e o azul dos olhos seja o pronúncio de esperança. e talvez construa um mar só para ele. maior e mais azul – não consigo parar de olhar para o interior do berlinde. é lá que existo. é lá que me tenho de perdoar. o futuro depende da absolvição. e o desespero oração – entretanto. com esta face. sei que o futuro é uma bola de fogo. onde o pavor arde com todas as palavras que não sei pronunciar – o que guardo desse passado? só o alguém um dia me disse: tenho orgulho em ti – talvez seja pouco. mas é o suficiente para não fazer de mim um erro. mesmo que cresça com o tempo.  e me faça sofrer. sei que vou resistir – quero morrer. com todas as incertezas. todas as dores. todos os pasmos. apenas morrer – tenho medo. mas a minha esperança é que o berlinde se transforme num peixe que respire no mar e no ar – tenho medo de perder o berlinde. mas também de tê-lo no bolso – tenho medo de quase tudo. principalmente de mim

 


17/07/2010

o mercado dos poetas







não há poetas mais. ou menos. há apenas poetas. uns escrevem o que veem. outros o que pensam – os poetas desenham. pintam vidas que mais ninguém vê. com os seus modos e costumes. risos e choros – acendem a fornalha. criam os moldes. enchem-nos de palavras. misturam as palavras com o fogo. e assim nascem os livros – um poeta dá-se por inteiro aos outros. despe-se de preconceitos. e nus passeiam pelo mundo como se vestissem um smoking – um poeta é uma carpidura sem lágrimas. colhe todas as dores do mundo. e dá-lhe um sorriso  – hoje. apanhei um poeta. estava mesmo a passar à minha frente. lendo um livro à moda antiga. declamava com curvas e contracurvas. ora sério. ora ria. ora levantava a mão. ora dava um passo em frente. mas. em todos os movimentos. trazia consigo a beleza de todas as manhãs primaveris – olhei-o fixo. sem saber o que fazer com tanta palavra bonita. todas tão elegantes. requintadas. tão bem adornadas. trouxe-o para o meu mundo e pensei pregá-lo a uma parede. junto aos quadros onde guardo pessoas vivas – percebi que não tinha boca. nem braços. nem corpo. nem pés. nada onde pudesse pregar uma pequena tacha para o segurar na minha vida - fiquei sem saber o que fazer. preguei-o dentro de mim. e fui escrever com ele: era uma vez. um poeta... – o poeta tem um lugar reservado no céu. um espaço onde ninguém mais pode entrar






triste porquê?









escrevo com os pés. e tenho um ninho de gaivotas atrás de uma orelha - falo por gestos para não me ouvir. é deste modo que acabo por matar o silêncio – sou um desastre – estou a negociar duas mãos em segunda mão. que conheçam todas as palavras. preciso urgentemente de me escrever. e também de duas rótulas de titânio. chegou a altura de me sentar para descansar. o tempo passa tão rápido – ofereci-me como voluntário para ser louco na minha terra. não aceitaram. dizem que ainda não sou um deles – disse-lhes que quero ser poeta. e até tenho uma amiga que tem o nome de espanca. eu também tenho. ninguém sabe. espanco-me todos os dias e cubro-me de sal para me conservar lúcido – riram-se todos. olharam-me como se eu fosse normal – desesperei. meti a mão dentro de mim. arranquei o fígado que já não purifica coisa nenhuma. cortei-o às postas. chamei os leões-marinhos. e atirei-o para o meio da gente sã – foram todos comidos por uma história que bem podia ser a de qualquer tolo – quando nasci também fui cortado às postas. atiraram-me à vida e fui até onde cheguei: a tentar ser poeta – deveria haver uma lei que proibisse espancassem todos os querem ser poetas – criei eu a lei e uso-a sempre que posso. não me bato quando estou em frente de estranhos – não precisam de saber dos meus devaneios – também gosto da lei que diz que todos os loucos são inimputáveis – como eu – tenho pena é de estar tão só. toda a gente me parece tão anormal



quase louco









tenho uma parte de mim a pairar por aqui

[o louco tem a mania que tem asas]

pede para falar com a outra parte de mim

[o esticadinho tem a mania da razoabilidade]

logo hoje

[terça-feira. depois de um segunda-feira e antes de uma quarta-feira]

já disse que não estou para ninguém

[o poeta. absorvido pela classe das palavras determinantes]

veremos. talvez mais tarde

[com o modo imperativo]




a árvore e a pedra










tenho o espectro de uma árvore num vaso no meu terraço. secou há muito tempo. era daquelas árvores de companhia. que nunca seria capaz de me fazer sombra ou albergar um ninho de pássaro – mas gosto de imaginar a árvore com aquele tronco franzino. engelhado. seco. sem fruto nem flor. a fazer do meu terraço quase uma floresta – não tenho uma única memória do seu passado. não me lembro de uma única folha verde. onde a água era a sua vida. e a mão do homem esperança para uma eternidade que não existe – hoje. quando a quero recordar. sobrevive apenas em memória um pau ressequido. seguro por um punhado de terra. também já morta. incapaz de sustentar qualquer tipo de vida – a seu lado. a companhia de sempre. uma pedra quase lápide. igual a qualquer outra qualquer. teimava em acreditar que um dia faria parte de uma história ao pé de árvore gigante – gastou-se pela inutilidade. acabou por esquecer a sua própria história. atirando-se montanha abaixo. acabando de vez com a sua inutilidade – precisava de entender como se procedia à fotossíntese. estava cansada de viver ao lado da morte. precisava sentir a seu lado árvores a tocar o céu. transformando a desilusão em vida  – tinha ouvido dizerem que. numa cidade perto de si. havia uma feiticeira com uma porção mágica capaz de dar vida às pedras com ambição – neste pedaço minúsculo de terra. a pedra sabia que era a única diferença para a árvore. sua única companhia – e assim se fez do meu terraço um deserto de inutilidades: apenas uma árvore sem vida. uma pedra. e um punhado de terra. todos falecidos. só a memória do vaso guarda o que lá se passou. tão pouco – moral da história: para aprender. temos que ter quem nos ensine. para evoluir precisamos de companhia. e para se ser bom. devemos ter ao nosso lado quem seja melhor do que nós – esta pequena árvore. agora morta. sempre gostou de aprender. de saber coisas. muitas coisas. até as inúteis. como saber que o cometa halley passa pela terra a cada setenta e seis anos – já não estará cá. ela e eu. talvez a pedra resista. mas continuará a ser pedra



13/07/2010

resistência – até quando. até quando









acordei com duas árvores amarradas aos olhos – sonhei com uma floresta de borboletas. todas com várias cores e formatos. todas voavam sem parar – eram aos milhares. umas para lá. outras para cá. mas nenhuma deixava de bater as asas – sabem que vivem pouco e cada bater de asas é um sopro do outro lado do mundo – o relógio é uma invenção do homem para conseguir apanhar borboletas – voam sem direção. sem tempo. como se o seu mundo não tivesse fim. como acreditam alguns humanos – soltei-me dos olhos. amarrei-me às árvores que pareciam tocar o céu e trepei sem olhar para baixo – só parei no topo. sentei-me num galho imaginário. como uma cadeira sem costas. pobre. de madeira carunchada. rangendo como todos aqueles que um dia falaram para mim – olhei. levei as mãos a uma nuvem que por ali passava. lembrou-me o algodão doce que um dia o meu pai me deu numa procissão da semana santa. jurou proteger-me das alturas – nunca senti essa proteção. talvez porque havia muitos meninos mais tristes do que eu. a maior parte deles nunca tinham comido algodão doce. outros. não tinham pai. nem mãe – talvez por isso a santa no andor nem reparou em mim. e nas alturas. às costas de uns quantos homens vestidos de negro – olhei para baixo. que afinal era já ali. na imaginação. minha árvore tocava o céu – deixei cair as mãos. cortei-as. tive medo de me matar. às vezes ficam tão magoadas comigo – possivelmente têm razão. nunca as pus a fazer algo de jeito. a ambição inchou-as. acabaram por cair de gangrena. e para ficar com o corpo simétrico cortei os pés – estou farto de fugir. para onde vou sem mãos e pés? – em tempos tive uns sapatos de cordão. eram pretos. com o tempo ficaram castanho claro. o pó da terra que pisei entranhou-se dentro do couro. os anos passaram e o pó. que antes estava apenas no couro dos sapatos. acabou por se entranhar na. e nunca mais tive pele – talvez o melhor fosse morrer. tenho comigo um machado que amolei no passado. corto umas árvores e faço da minha vida uma fogueira para náufragos – vivo na costa da morte – aqui. morre-se mais vezes. e já nem se nota



bom dia







esta é a hora real

se algum poeta existiu

morreu com o nascer do sol

pobre coitado

esqueceu-se de guardar as palavras

 

sozinho

despido de sentido

finou-se sem glória

 

e. sorrindo

disse: bom dia

 


atlântida








esperei

mas nem uma voz nasceu

mentiste-me

afinal. não estavas grávida de mim

enganaste-me

nunca mais te direi onde fica a ilha dos sonhos

 

tinha duas lágrimas guardadas:

uma para ti

outra para mim

 

queria tanto partilhar este lugar

dividir a ilha ao meio

de um lado tu

do outro. tu e eu

 

era assim a minha divisão

da ilha que um dia sonhei para ti




descodificar sinais






estou aqui. ouvir-te-ei. mesmo que não reconheças as minhas orelhas. estão disfarçadas de olhos. escondidas sob pálpebras que só se abrem à noite. quando a voz é pura e o barulho das estrelas é o pensamento 



quando perdemos o pé









soltou-se uma pedra da minha montanha

rebolou

rebolou

acenou a um corvo que ria de lado

continuou a rebolar

a rebolar

a rebolar

acenou a uma conversa de escárnio

continuou rebolando

rebolando

rebolando

acenou a uma multidão surda

e teria rebolado muito mais

ai teria rebolado. ai teria rebolado

se…

 

fechei a porta

cansado de rebolar

para rebolar

teria que estar no presente

mas não estou

nem no futuro

onde estou. só sabe deus

 

por isso

hoje não estou para ninguém

rebolai vós

eu rebolarei

noutra montanha

noutro dia

 




viva melhor








sou alvo fácil das certezas alheias

são balas

e quando me apontam o dedo

já cheiro a defunto

 

morte estúpida

logo agora que estava a ler: viva melhor

 

ps. apenas para os mais íntimos

[entusiasmei-me com estas merdas novas de saber comer

e agora estou convencido

se fosse mais obeso. a bala não tinha ultrapassado

a couraça da indiferença]

 



epitáfio da tint





 

 


segregação…

das diferenças

 

silêncio…

também nas mãos

 

caneta…

jaz imóvel

 

enregelou…

de solidão

 

abro o fecho éclair…

o coração salta para o papel

 

escreve…

uma última palestra

 

à meia-noite…

doze batidas

 

tudo escurece…

cambaleou

 

cai dentro do tinteiro…

geme

 

solta os últimos suspiros…

contorce-se

 

enrola-se num mata borrão…

parte para sempre

 

 

 


05/07/2010

desabafo









ao lado. um almofariz – dentro. restos de ideias. alimento frugal para a arte um pobre escritor. que insiste em escrever o que apenas os seus olhos sabem ler – sento-me sobre os escombros do dia. enquanto os olhos repousam com o que trazem para dentro do corpo – estou exposto. entregue por inteiro a quem um dia quiser dissecar o meu interior – já não tenho forças para me fechar ao mundo – a esperança. moribunda. fita-me. e eu aqui de mãos vazias

 


uma conversa








não ficas só. esse mar onde vais lançar a âncora também é meu. por detrás daquela rocha enorme. que te rouba o sol. tenho uma dor enterrada – dou-te metade dessa ilha minúscula. perdida no meio do nada. para que possas enterrar as tuas dores – mas não todas. tens que ficar com algumas debaixo do pé direito. temos que conversar – também eu digo ao mundo que há uma razão para escolher as palavras – mesmo quando as mato. faço-o por uma razão – às vezes. a razão é a solidão das multidões – mora num corpo que vê dento o que não há fora – este corpo chulo tira-me tudo. vende-me. prostitui-me. e todos os dias me cobra uma alegria que deixo ficar nos pensamentos. e afogo a cada soluço – estou só. estou e estarei só – tenho apenas umas putas de palavras. que espalho por aqui. na esperança de encontrar uma ilha maior onde possa enterrar o corpo todo – um dia. juntarei toda a poeira que há dentro de mim e com ela farei uma ilha.



coisa








deixem-me ser

um pedaço de algo

de qualquer coisa

de uma coisa que não é nada

talvez de um espaço

vazio e sem formas

aqui. vale o instinto 

das coisas que dizemos

para mostrar-vos

que sou uma coisa

no meio das vossas coisas

  

assim serei. nesta coisa

que deixo aqui para lerem

na esperança

de ser

uma pequena coisa

e que as palavras

se encaixem no vosso olhar

nestas coisas que escrevo

sou esta coisa

de coisa nenhuma

mas hoje

onde o mar leva e traz coisas

apenas as gaivotas

sabem ler

esta coisa de tentar

pôr as palavras a voar

  

mas há coisas e coisas

e eu tenho uma coisa

que não se escreve

é uma coisa meiga

daquelas coisas

que só damos

aos amigos

os abraços

são a maior coisa que tenho

no meio de tantas palavras

onde sorriem os beijos

 


e assim. faço desta coisa

um simples abraço

que escrevi como

outra coisa qualquer

uma coisa importante

para a leitura

com um beijo-coisa

que não é qualquer coisa

 

 

os abraços

são a maior coisa que tenho

no meio de tantas palavras

onde sorriem os beijos

e assim. faço desta coisa

um simples abraço

que escrevi como

outra qualquer coisa

uma coisa importante

para a leitura

com um beijo-coisa

que não é qualquer coisa

 

 

sou assim. mais uma coisa

presa a coisas que sinto

ser coisa é medonho

talvez uma arrogância

de querer ser algo

que não sou

sou esta coisa que sou

nasci com uma dor

que se transformou numa coisa

uma coisa que me mata

por coisas que não compreendo

já não consigo contrariar

as coisas

que. afinal. são minhas coisas

serão as coisas que levarei

para um mundo de coisas eternas

 

  

sou uma coisa

sim. uma coisa

tão pequenina

tão inútil

diante do tamanho da palavra

COISA

por isso escrevo coisas

para aliviar este homem

feito de coisa nenhuma


johann sebastian bach - suite nº3







entre os dedos

desponta um som

hoje é quinta-feira

mas esta música

o som

a melodia

a mansidão

a criatividade

o pavor de saber que tem fim

 

as notas ordenadas

talvez militares

pela forma como marcham

a clave de sol

ilumina

a partitura brilha

o fá

o dó

o ré

as colcheias

as semi-colcheias

que seriam metade de tudo que ouço

mas não são

são um todo

 

até o mi

parecido comigo

melancólico. digo eu


uma fresta se abre

a dor esvanece  

o tom é sereno

a remissão do sonho

a pauta treme

a batuta geme

comanda

a música

a vida

o sonho

a esperança

de uma quinta-feira

que apenas quer morrer em paz

ao som

de uma clave de dó

de bach



era uma vez








notícia de última hora:

um comboio de mercadorias

transportava palavras oriundas do bojo de um poeta

descarrilou – [fodeu-se em linguagem popular]


não há sobreviventes entre as palavras

 

o artesão

maquinista desde a invenção do comboio

dormia debaixo de uma árvore

tinha na mão um lápis e uma borracha

a seu lado garrafas de cachaça

 

bêbado

rasgou a folha a meio

 


a dúvida







a letra desvanece

os olhos escurecem

a manta encurta

as mãos enrijecem

e a dúvida fortalece-se

 

segura todas as palavras

todas

mesmo sendo poucas

são todas

um tesouro

 

“a dúvida” será o título

deste excremento

perdoem-me

se o texto vos suscitar

dúvidas

sobre o próprio excremento

 

as palavras

sei que são escassas

mas mesmo assim

componho

uma vida de excremento

e

excremento sem vida





ferro velho








comecei a chorar. não por que quisesse. mas porque acabara de comprar estas lágrimas na feira da ladra – o homem de fato treino que me vendeu as lágrimas calçava umas sapatilhas nike. tinham pertencido a alguém que correra os cem metros em menos de dez segundos – do seu corpo franzino pendiam mãos enormes. ossudas. quase mortas. uma barba espessa. e uns olhos fundos. escavados em granito preto – confiei nele. não estava de fato e gravata. nem tinha uma pasta de pele confecionada por um qualquer estilista francês. tinha um banco de praia enferrujado e um cobertor diferente de todos os que eu conheci: roto. sujo. e cheio de quadrados irregulares. talvez triângulos isósceles. com ângulos que apenas ele os conhecia – perguntei-lhe onde tinha colhido estas lágrimas tão transparentes. não me quis adiantar muito. o segredo é a alma do negócio. tinha um vício para alimentar que não lhe dava descanso. acordava-o todas as manhãs com as dores de uma jornada incerta. feita de uma corrida contra um tempo que dói – essa dor. silenciosa. segreda-lhe todos os dias ao levantar. que agora falta menos um dia para o dia do juízo final – para ele. o sol está onde sempre esteve. ali. a nascente. onde. um dia. o pai o levou pela mão para ver a quantidade de ferro velho que os humanos produzem – talvez tenha sido nesse dia. ternurento e cruel. que o seu corpo encheu de medo. e se tornou frágil para sempre – quem sabe. algumas daquelas criaturas venderam a alma ao diabo. e agora estão todos na feira da ladra. a vender o que lhes sobra da vida – mas foi nesse mundo de sobras que encontrou a única solidariedade verdadeira. fez dela abrigo. e do seu corpo uma morada de vida – desesperado com ele e com o mundo que o alberga. embrenhou-se para sempre nas suas veias que. com o tempo.  desfizeram na procura de alívio divino – olhávamo-nos. eu imaginava a sua vida. e ele imaginava a minha. e cheguei a simples conclusão: eu podia ser ele. e ele eu – a única diferença é que eu virei à direita. e ele à esquerda. eu tive a minha família para me amparar. ele não. eu tive amigos para me amparar nos momentos de dúvidas. ele nunca teve amigos – quem realmente somos nós para condenar quem quer que seja. para podermos falar da sua vida teríamos que calçar os seus sapatos. viver na sua família. ter os seus amigos. e mais importante. pensar pela sua cabeça – queria falar mais. mas a roupa mostrava que pertencíamos a mundos diferentes – havia um muro de betão a nosso meio. eu tinha medo de ser arrogante e insensível. ele talvez tivesse medo de me mostrar como realmente era – ligou um gira-discos de uma época onde os brinquedos eram de chapa. tinha uma agulha de aço. e uma orelha enorme por cima do corpo de madeira com manivela – percebi o porquê daquele homem ter dentro de si todas as dores do mundo. vivia no passado. onde o gira-discos era um objeto superlativo numa casa. musicava os lares. e as famílias dançavam à volta de si próprias – este ouvido gigantesco do cantante. tinha uma caixa capaz de abrigar todos as injustiças que o seu mundo produzia – e quando a música começava a ficar roufenha. sabia que era altura de dar à manivela. como se carregasse a caixa de uma nova vida. coisa que não conseguis fazer em si. estava sem forças. e sozinho num mundo que não tolera as diferentes – lentamente. a música ergueu-se. encheu o espaço. tocou para si. para mim. para nós. e ali ficamos. comtemplando-nos. desejando que a melodia nunca cessasse – começou a gotejar umas pequenas lágrimas. iguais às minhas. só que as dele estavam cheias de arrependimentos. menos transparentes – ficamos por ali a conversar. falamos da vida que ainda nos faltava viver. da sua manta de retalhos. e dos restos do seu mundo. espalhados ali para vender que tinha ali para vender – em cima de um tabuleiro de casquinha de prata. havia uns cristais italianos de murano. perguntei-lhe onde os tinha adquirido. disse-me que tinha sido uma herança. um amigo visconde que tinha acabado morto dentro de uma urna de pinho. deixou-lhe também uma colher e um limão. que ainda hoje guarda dentro da caixa de música – era escritor. teimava em escrever o que ninguém lia. nas noites em que abraçavam o mesmo destino. dizia-lhe com um sorriso. que apenas a dor conhecia: um dia nasceremos de novo. num mundo mais bonito. sem dor. sem ostracismo. sem indiferença e sem o peso das sobras da vida: o ferro velho