.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/06/2010

sábado









nem sei como o que te dizer! não contava nunca estar nesta situação de falar de mim – sou ao contrário dos que comigo partilham o dia-a-dia. muito reservado. talvez porque duvido sempre do que penso. e por arrasto. duvido da forma como transformo o pensamento em escrita – dúvidas que crescem comigo – gostei de deixar-me levar pelo arrasto das tuas ideias. foi bom saber que alguém é capaz de tentar perceber o contexto das minhas palavras. tanto na dor. como na esperança. na desilusão. ou até no desabafo literário – passei a acreditar que ainda é possível entregar a alma em palavras sem nunca deixar de ser o que sou. principalmente. depois da escrita ser largada ao vento – és agora. também tu. uma fiel depositária de muito do que sou nas palavras – um dia. reclamarei de ti a devolução. não das palavras escritas. mas essencialmente da voz com que as guardas – nesse dia. falaremos sobre todas as coisas que ainda possamos descobrir com os novos desafios literários. que por certo virão – com este convite fizeste-me recolher à minha tábua da escrita. imaginei como seria eu no meio de tanta gente. como evitaria corar. como vos diria que eu não sou eu – como seria ler sob vosso olhar? sou apenas a contracapa de um personagem que nasce na escrita e morre ao amanhecer – a luz desfaz os sonhos dos vampiros das palavras – serei merecedor de uma estaca de madeira no coração? morrerei continuamente para poder escrever sobre a desilusão? nesta ilha. que é só minha. cercada de livros e mar. onde as gaivotas choram por cada barco que parte. o silêncio do mar cumpre-se sempre – aqui há silêncio mesmo no ruído – o mar sabe que este pedaço de terra que inventei. serve apenas para repousar o corpo da morte – aqui. as marés obedecem a um ritual antes de partirem de vez: chamam-me pelo nome. e deste mundo. ao teu mundo. o mar nunca acaba – o que sei é que até as gaivotas preferem morrer comigo – conhecemos cada rosto. e em cada um reconhecemos um pouco do nosso rosto – as faces. aqui. na minha ilha. estão todas rodeadas de mar. mesmo quando coloco os olhos no chão. com vergonha. tu sabes que escrever é um abismo – a ilha será sempre o refúgio onde o sal e a humidade se entranham nos ossos – talvez um dia. eu arranje um barco para me levar desta minha ilha. criada pela imaginação. para conseguir estender uma passadeira de palavras a este mar que me divide o tempo – e aí sim. essa tua vontade será também a minha. e mesmo que o mar se revolte na ilusão. caminharei sobre as palavras. como jesus caminhou nas águas. levando ao mundo as letras que inventei

 



sexta-feira







sexta-feira. todos os livros continuam em cima da minha tábua de escrita. tomaram outra forma. sabem que o fim-de-semana chegou. um tempo mais longo e mais livre – é um espaço temporal que dá para ganhar uns pozinhos de bem-estar – estes livros. carne da minha carne. sabem quanto tempo me ocuparam. uns riem. outros continuam sérios. outros incharam. como que a dizer que continuam prenhes. outros ainda. catam os capítulos que podem fazer de mim um pouco mais feliz. como as mães de antigamente. que penteavam os filhos à soleira da porta – outros livros. discretos. assobiam. parecem distantes. gostam de se fazer de difíceis. mas no fundo. no fundo. morreriam por um minuto nas minhas mãos. sabem que guardo para eles sempre um carinho. num bolso escondido por detrás de uma costela. talvez a de adão  – por último. sobressaem os mais ousados. desesperados digo. pelo tempo que sobreviveram na obscuridade. suportaram todos os livros que vivem perto de mim – estes mostram as suas partes mais íntimas. são livros parados no tempo. no tempo deles. e no meu. que se torna cada vez mais escasso. tudo fazem para ter um lugar nas minhas mãos. ávidos de sentir o suor a passar página a página – o meu olhar. no entanto. mantém-se distante. indiferente. como um pai que gosta de todos os filhos – não escolho os livros. eles são tudo o que eu tenho. filhos que adotei para prolongar a vida. a minha de leitor. e a de quem os escreveu – para todos tenho uma leitura. e todos são agora um pouco de mim – é o dia que escolhe um livro. e não o livro que faz o dia – hoje. estou comigo. apareceu um vento quente do sul. vento sudeste. dizem que traz as areias revolvidas pelos homens do saara. beduínos que criam apenas ovelhas e cabras. e carregam nas vestes brancas. que escondem linhagens e todas as histórias de um passado – sabem-no apenas. porque sabem ler o movimento das areias. e ao contrário dos livros. eles fazem passar de boca em boca a história da sua vida – eu terei um livro para contar a minha história. e quando partir em direção ao universo. deixarei o que resta de mim dentro de um monte de areia solta ao vento – já tenho um livro especial: o álbum onde eu cresci. pelas mãos de quem queria registar tudo o que me propus fazer – o primeiro ano com um fato azul e branco às riscas. parecia um marinheiro. talvez tenha começado aí o meu gosto pelo mar. depois a minha primeira comunhão. de joelhos. sobre uma almofada bordeaux. seguro uma cartilha que me garantia para todo o sempre a companhia ao lado de deus – o fotógrafo via-me no futuro. eu olhava para um espaço vazio. tal como eu – e assim fiquei. a olhar para o mundo até aos dias de hoje. ninguém precisava de saber o turbilhão de demónios que já moravam em mim. transfigurados em dor – fui crescendo. e até de cowboy apareci. tinha um ar simpático. trazia um lenço vermelho amarrado ao pescoço. e o chapéu de alguém que nunca tinha sentido o cheiro de uma pradaria – a estrela de xerife mostrava um respeito que eu não sentia. mas as pernas não paravam de crescer. e de todas as fotos. há aquelas que um dia espero ainda vir a gostar. porque mostram o mundo que me fez crescer. não importa se bem. ou mal: a família. os amigos. os carros. os colegas de escola. depois perdi-me. e nunca mais soube onde me procurar – de todas as fotos. há uma que guardo em mim com carinho. estava na praia. tinha a meu lado todos os ingredientes para o meu primeiro sonho: o baldinho. a pá. o engaço. o regador. e até as forminhas para poder construir casas e castelos. com fadas. e talvez até o peter pan – naquele areal o mar era meu. as gaivotas voavam sobre mim. e tudo me parecia imenso diante da minha pequenez. os sons eram como se tivessem nascido dentro de mim: o das marés. a bola que corria de encontro ao mar. que sempre devolvia. como se dentro dele já existisse tudo o que bastava. o homem carregado de línguas da sogra. e a sarronca a anunciar o nevoeiro – dentro desta moldura no tempo. recordo-me nu. nada me protegia. talvez porque nada fosse realmente importante. ou talvez porque foi assim que nasci. e foi este mundo que me trouxe até hoje – se nu estava. nu permaneço.  escrevo esta sexta-feira. diante do vento

 

 


quinta-feira







faltam vinte e quatro horas para que a sexta se dissolva no sábado – penso nas minhas gaivotas. sei que voltarão ao fim do dia. trazendo nos olhos um mundo: as marés. os barcos. as varinas. e a faina dos homens do mar – nunca percebi se estes homens deixam as mulheres órfãs. ou se. ao regressarem. é o mar que fica órfão – penso na minha mesa de escrita. começo a imaginar tudo que deixei em aberto com a semana – lembro-me de deixar um arpão a marcar a página de um livro. tinha um poema maldito para mandar a um amigo que me tem tratado como inimigo – esta maleita de perder um camarada que ainda ontem era carne da minha carne. é muito doloroso. penso que partiu por causa de uma gaivota de sapato alto. sem avental. sem porto seguro. quer apenas um mar revolto. mas será sempre uma gaivota de falésia. presa às rochas e ao sopro húmido do vento marítimo. não sentirá aquele prazer de se sentar num rochedo no meio do mar. e vociferar o seu nome a todas as sereias que as ondas encobrem – muitas vezes perdemos gaivotas que tinham um nome dentro de nós. entram para um mar que não é nosso. foram em busca de pedaço de terra prometida – também elas andarão perdidas. levarão consigo a solidão dos dias de inverno – um dia. vou mostrar que venho ao mar não apenas para contar estrelas. venho limpar-me dos males do mundo. purificar-me – ao lado. um pisa-papéis. dentro. uma cabana de pescador aprisionada no vidro. perdida no meio de uma onda. talvez a casa de um homem sem gaivotas. sem terra à vista. sem nome. perdido de si e da vida – tudo parece imperfeito demais para não ter mar nem gaivotas – arrasto a imagem para perto dos olhos. apetece-me contar-lhe um segredo. não é um grande segredo. foi apenas um amor que perdi quando aprendia as letras. perdi a criança que vivia dentro de mim –nesse dia. lembro-me de ficar sozinho. sentei-me à beira do precipício. abri o alforge do conhecimento. de lá tirei um pão com marmelada. embrulhado num pano tecido por mãos com futuro: as da minha mãe – duas inicias bordadas a linha dourada: SR – as letras mais bonitas que alguma vez vi. sobressaíam num pano que bem poderia ser a camisa de meu pai. ou a calças rasgadas do meu irmão – mesmo sozinho. eu tinha aquelas letras para me defender de todas as brisas que me empurrassem para norte – escolhi duas lágrimas para aliar da pressão. as melhores. as mais dolorosas. mas também as mais límpidas e genuínas – cravei o retalho no peito a fogo e com um anzol de pescador. cosi em cruz as linhas da minha vida – nesta tábua. tenho ainda uma pilha de livros. enorme. vivem lá autores que nunca poderei ler. escrevem coisas felizes. coisas que eu nunca irei saber. mas a pilha continua a crescer. tapa-me a janela que me mostra o passado. o que é bom – é uma janela a norte. nunca por lá vi uma gaivota. mas foi ali que nasci para o que sou hoje



quarta-feira









hoje não me apetece escrever. estou com uma dor de cabeça infernal. nem suporto o barulho das teclas a bater – olho para trás e não encontro nada que me alivie o peso dos dias. olho para a frente e sinto o drama do sangue nas pontas dos dedos. vou acabar frustrado comigo – estou parado diante de um papel que me parece imaginário. mas eu sei que ele existe. há um fio que traz corrente elétrica. de dentro desse poste imenso. que um americano visionário vendeu ao mundo. há uma infinidade de circuitos interligados. faíscam entre si. iluminam tudo – o papel fica luminoso e as palavras nascem com um pensamento que. afinal mais não é do que mãos raivosas a excomungar o mundo – eu também sou uma invenção foleira. não de um punhado de dólares imperialistas. mas de um escudo que deveria ser orgulho. mas não passa de uma ilusão vazia – tenho aqui uma treta de uns bonecos dentro de mim que se acendem quando liberto a energia. falta-me um estabilizador de corrente para manter os neurónios alinhados com os mãos – estes bonecos de feitios distintos muitas vezes entram em conflito – são implacáveis! uns pensam que escrevem. outros que sabem ler. outros imaginam-se cientistas de régua e esquadro. dizem que inventam. mas não vejo futuro no pensamento improdutivo. outros ainda são uns cabeças de vento que não querem fazer coisa nenhuma – para estes. onde houver um chaparro alumiado por um fusível de 220 volts. é onde dormem melhor. apenas se perdem em divagações inúteis – quando estes irmãos fusíveis se incendeiam. bem. nada segura os bichos dos eletrões e protões. comem-se uns aos outros – esta bonecada cheia de energia é mais intensa quando acordo irritado. mando tudo para aquela parte. falo sozinho. a barba são quatro navalhadas com dois cortes profundos. e até o champô tem um cheiro horrível – o dia vai ser diabólico. e de toalha à cinta seco o corpo enquanto leio emails. em suma. discuto com todos e a todos digo que não sou um estorvo – tudo me corre melhor a partir do momento em que a eletricidade se transforma em faísca no caminho dos outros. digo cobras e lagartos e viro o mundo de pernas para o ar – os sonetos são um tédio. os poemas exalam um amor pegajoso. o mar e as ondas enrolam-se na lua cheia. que nunca conseguiu iluminar coisa alguma. nada me parece interessante – até o jornal regional que compro pela manhã para saber dos mortos da terra está um desastre. hoje. não morreu nenhum figurão. vamos ver amanhã – começo a sentir-me mais mortiço. bebo dois cafés expressos de um só gole e sinto novamente a ira a tomar conta de mim – sinto todos os nervos em curto-circuito. mas chego à conclusão que sem a merda desta engrenagem não escrevo coisa nenhuma – começo a ficar triste. as palavras cada vez são menos minhas. é mais uma dor que chega quando a energia não é suficientemente forte para alimentar as mãos que teclam – é a maldição da quarta-feira. o mar está para lá distante. e até as minhas gaivotas estão para a faina – estas. saem no começo da semana e seguem os barcos para dentro do nada. sabem apenas que têm que comer para poderem vir a terra de quando em vez – também eu. saio pela manhã. o livro dos afazeres tem na primeira página em letras grandes: segue em frente. tens que chegar ao fim-de-semana para reveres as tuas gaivotas

 




terça-feira






quero escrever. mas as mãos estão trémulas. não sei se é medo de saber que o que tenho para escrever é igual ao dia anterior. ou porque a arte é reduzida – a diferença é que este dia vem sucede a segunda-feira. começa com o amanhecer – obrigações deixam-me sempre angustiado – o dever sempre me aborreceu. deixa na boca um gosto a fel – ainda não percebi o porquê de gostar de escrever. deve ser um vírus qualquer – ontem respondi a uma mensagem de uma amiga que me questionava sobre esta mania. respondi que escrevo para me sentir mais próximo de quem me compreende – esta é a melhor definição para alguém como eu. estar próximo de quem me entende sem nunca ser parte desse grupo – por isso escrevo. gosto de escrever. e assim sentir que a minha verdade pode viajar como bem entender – gosto de sentir em cada adjetivo a verdade da ocasião – este é o risco de quem escreve o presente com base no passado – escrevemos sempre o agora – mergulho em mim e trago para as mãos tudo o que pode interessar aos meus seguidores. para que possam compreender os meus ‘eus’. aceitando ou rejeitando aquilo que sou e o peso de cada palavra – vomito-as das minhas angústias para este papel outrora branco – há dias que estou tão só que apenas quero ver as minhas palavras no olhar dos outros. acredito que me escutam – é neste desespero que volto para dentro de mim. tentando encontrar um pouco mais do que escapou. outras vezes apenas para me esconder do mundo – a dor aqui é muito séria. crua. mas é quando aceito com custo que as escolhas que fiz ao nascer – alguém tudo cresceu mais rápido que a camisa que um dia quis vestir – translúcida. fluorescente. com um bolso enorme de tolerância – rasgou-se pela força da desilusão –– mas a dor persistia. enrosca-se em mim como o polvo de sinbad. da lenda dos sete mares. e as noites são lutas intermináveis – nessas noites. a vergonha mata-me. queria tanto ter força para deixar de sofrer. para rasgar o papel que afinal era uma carta cheia de desculpas – nessas noites. a dor era tão forte. que todo eu chorava. não apenas os olhos. mas as entranhas. os ossos. a espinha que me mantinha curvado. e das mãos desprendiam-se pedaços de carne herdados de uma família que esperava mais de mim – e eu desfeito. rasgado de cima a baixo. estripado de tudo que me fazia ser eu. aquele que sempre se entregou ao amor pelo amor – a noite consumia tudo que eu tinha. para além da própria dor. e. no meio dela. apenas me restava a força para abrir os olhos com o sol da manhã – como queria ser feliz. mas parecia-me tudo tão distante – as soluções estavam. além de uma montanha que eu próprio construi – a última vez que alguém me garantiu essa não solidão. obrigou-me a levar uma cartilha branca. uma vela de cera rendada em laço de seda da índia. estava eu de calções de veludo. e com um laço apertava a camisa de folhos. nos olhos. a esperança de quem acreditava que tudo fosse verdade




segunda-feira









segunda-feira. o despertador alerta-me para a realidade. levanto o corpo duma cama que me guarda todos os sonhos. mas a alma. essa. fica de guarda ao que resta dos meus projetos. mistura-se com a roupa suada das noites loucas de amor – o sol desponta. as gaivotas planam num tempo que parece sempre igual. e o mar continua a ir e a vir sem lamentos – ponho a cama de pé. encosto-a à parede inclinada que sustenta o quadro de um artista desconhecido – a cadeira. que serve de assento às ideias. guardo-a dentro de um guarda-vestidos – é valiosa. ali descanso a vontade de escrever – meti-a entre uma camisa branca e um par de calças pretas. roupa que estimo – um dia. que espero tardio. com uma gravata preta. farão comigo a viagem eterna – do outro lado. virado para a janela que espreita o sul. o toucador – tem em cima um espelho baço que suporta o reflexo de toda as minhas debilidades – um dia perguntei aos amigos se gostariam de conhecer mais um pouco do outro que mora comigo. não ouviram – creio que não acreditam que dentro dos olhos se escondem outros olhos – apenas as gaivotas. minhas amigas de longa data. recordam as noites em que choro. embalam-me com as suas danças sobre o mar – este espelho. preso ao toucador. comprado numa feira de diversões a um anão que queria ser grande. é o único a ler as minhas lutas internas. e em cada lágrima vertida a desilusão de não me ver como deveria ser – o meu destino e a desilusão são companheiros de viagem – mas hoje encerrarei a caminhada por um tempo. entrarei para dentro do espelho e ali ficarei. protegido do mundo e de mim. trabalharei sonetos e prosas. talvez um poema com rima cruzada - mas não. é segunda-feira. preciso de puxar o cabelo para o meu melhor lado. preciso de estar bonito. o trabalho é coisa séria e só comporta homens sérios – arranjei-me o melhor que pude. coloquei-me em frente ao espelho e perguntei-lhe: qual era o humano mais bonito? respondeu-me: a camisa está um pouco amarrotada. e precisas de um pouco de after shave. old spice – dizem que traz água do mar. e o barulho das gaivotas sobre um oceano que também te pertence – no fim. cada um faz o que precisa para sobreviver. também eu cumprirei o meu papel




domingo








domingo. o dia está envergonhado. o sol não é sol. as nuvens não são nuvens. e o vento. não sendo vento. incomoda o suficiente para me obrigar a procurar abrigo – mas deixo a minha imaginação à cata dos ventos perdidos – plantei-a num campo que um dia será de milho. vesti-lhe um espantalho. pus-lhe uma boina que um dia encontrei num sem abrigo – dizia-se morto há muito. não tinha relógio desde que se encontrou consigo mesmo. do passado. só guardava a memória da palmada do dia em que nasceu – ajeitei-lhe a boina. como quem ajeita a vida. apesar das mãos caídas. acredito que viveram o suficiente para serem mestras – hoje. de casaco roto. virado do avesso. veste umas calças aos quadrados azuis. cor dum céu que não é o dele. nem o meu – sinto uma simbiose com este espantalho – visto-me como ele. só não tenho uma boina para me proteger das noites frias. a ele faltam-lhe uns sapatos. mas para quê. se nunca sai do mesmo sítio – um dia deram-me umas sapatilhas brancas. diziam que era para saltar por cima de palavras perversas – atirei-as muitas vezes contra o destino – mas guardei-as no bolso dos aborrecimentos. e como  prova de que continuo a ser resiliente – sem elas. não teria a funda capaz de matar problemas gigantes – às vezes também me sinto um espantalho. umas vezes feliz. outras. volto-me para norte. é de lá que ouço o comboio apitar. avisando do mau tempo. da chuva e do vento – é domingo. e não enxergo nada – tenho nos olhos duas tâmaras pretas. trazidas por um árabe que vende cobras dançarinas – são enormes. diamantes que iluminam todos os que se afundam em palavras presas em areias movediças – as lágrimas são rios submersos – águas errantes que com o tempo se tornam amarelo terra – formam os oásis. libertação para qualquer espantalho – um corvo pousa no meu ombro. diz-me o que vê com olhos verdadeiros – teima em enxergar o que eu nunca consigo – reclamo da verdade dos meus olhos. mas ele ri-se – já estás cego há muito tempo

 


centrifugação







é sábado. as gaivotas perfilam-se além do meu horizonte – talvez queiram outro mar. talvez outro universo. talvez já não acreditem neste mundo sem rumo. talvez estejam cansadas de me ouvir. talvez… – hoje. só tenho uma pequena janela para atirar a alma ao vento – não é uma janela alta. pelo contrário. ergue-se do chão que todos os dias me engole para alimentar os seus vulcões –procuro um vento certo. um sopro que leve esta alma de navegador para além desta guerra entre homens – nu de tudo. por ser sábado. por tentar descansar. por não querer vestir palavras que não cabem nas desilusões – quero muito encontrar-me. nem que seja no meio do mar. suspenso entre ventos e ciclones. subir até ao topo do céu. ao topo de mim. centrifugar-me. juntar os pedaços dispersos dos meus eus e. para sempre. acreditar que esta nova fusão de átomos me devolva o que perdi – a idealidade – perseguida tanto que talvez agora me pertença – qual fantasma da ópera. qual navegador. ou gaivota. sou um homem-pássaro. sem pecado. sem remissões – sei que voarei alguns dias e no vento há de derrubar-me – mas que importa – se forem mil dias ou apenas um. importa que me encontrei. disse adeus ao que fui. marquei com um X a terra que um dia me cobrirá. tal como sou. tal como nasci – sei que cedo ou tarde cairei. o tempo nunca joga a favor de ninguém. mas se fui livre. nem que por um instante. então vivi – tal como o texto 




trocaste-me por trinta moedas









é espermatozóide

é embrião

é nado-vivo

é menino

é moço

é senhor

é pai

é avô

é cadáver

é. é isso mesmo. um aborrecimento saber que o tempo se esgota – o que construí para não terminar em vão? diz-me tu. ego de merda. iludiste-me. e agora nem um único travesseiro tens onde possas morrer com os sonhos que um dia imaginaste – não me venhas com ensaios. experiências falhadas. não me digas que isto foi apenas um teatro. um jogo de marionetes. onde eu segurei a corda que encerra a cena. e as pancadas de molière fecharam para sempre a ambição – não. não permitirei que me leves assim. tu prometeste que se eu estudasse. teria o relógio a contar as horas certas. se não dissesse palavrões o céu seria meu. e se me portasse bem. um deus qualquer. montado num cavalo de asas brancas. atiraria ao meu alforge uma lâmpada de aladino. com mais de mil desejos – não posso mais. estou arrasado. mentiste-me. puseste-me num espermatozoide que nunca soube onde queria ir. maluco para ser simpático – esse dia. em que desatei correr. não era amor. era truque. tu. o mágico. e. eu. a ilusão – ainda me lembro de mandares dizer pela catequista que tudo se resolveria com o sinal da cruz e um pai nosso –  judas. trocaste-me por trinta moedas e um monte de palavras sem valor. nascidas de um espermatozóide maluco



a morte que sobrevive - II







a morte encontra sempre um caminho para sobreviver – morro de olhos abertos. morro sabendo que não estou morto. apenas descrente de uma morte que me obriga a engolir uma dor que não é minha – chegou o momento de fazer renascer a morte que resiste. nem que mais tarde. volta a morrer novamente às minhas mãos



a morte que sobrevive - I





 


a morte é sempre uma porta de recurso para os desesperados – sinto muitas vezes que não a tenho como inimiga – pelo contrário – traz-me novamente para dentro de mim a incerteza de onde estou e para onde vou – agrilhoar o pensamento da morte à serenidade é alívio. excogitar o seu interior é perceber o caos que existe no exterior – posso então rir das bestas que pensam que viver acorrentado a um palavrão é a solução para não viajar– saio muitas vezes zangado para não dizer fodido – irrito-me pelas promessas que não se cumpriram. é quando preciso de terminar com tudo. e mandar todos para a puta que os pariu – mas é neste horror a preto e branco que me penduro na morte. e encontro conforto dentro de mim – mato-me aos poucos. e quando acordo no enrodilhado dos lençóis. encontro sempre um pedaço de mim sem vida – mas até isso é uma mentira. que já se habituou ao despertar do sol. sempre que necessito desse pedaço morto. faço-o renascer às garras da besta em que me transformei – é assim que saio para a rua: arrependido. mas vivo. pesaroso das mãos de carrasco. e fico sem saber se mataram por ser a única opção. ou porque nasceram assassinas. sedentas de dor em vida e em morte. dentro de mim ou dentro do que não sou – mesmo com esta insatisfação. continuam a ser minhas. e pela manhã. todos os dias. é nelas que deposito toda a esperança que me resta depois da ressurreição – escrever a morte só é possível para quem sobrevive ao terror. ao desconforto. e à mutilação do que carrego em mim por ser quem sou – as mortes também renascem em mim. basta a luz partir e o sol negro aparecer – sobrevivem como repteis. sempre diferentes. sempre iguais. como todas as coisas mutáveis deste mundo – eu também me sinto diferente. todos os dias nasço. e todos os dias me transformo  




17/06/2010

o peso das palavras







se hoje me apetecesse escrever. seria uma carta aberta – o papel seria pardo. a tinta vermelha. e assim. quem a lesse sentiria o inferno que tenho dentro de mim a arder – este inferno sobrevive além dos limites da minha imaginação e morre na raiva do que vejo e nada posso fazer – resta-me devorar os dedos. os olhos. a fome de todo o mundo: o egoísmo. o desemprego. a incúria. a corrupção. a malvadez do meu semelhante. que reduz o homem a nada mais do que um animal primitivo – luther king disse: grave. grave é o silêncio dos bons – sei que escrevo um monte de palavras sem interesse. mas não me calo. mesmo não sendo ouvido




olhar negro







eu tenho o meu mundo. um que invento todos os dias. sei que por vezes não planto nele humanos. só animais. os que me aceitam como sou – mas confesso. às vezes gostava de ter outro mundo. um suplente. um que fosse meu e vosso. mas apenas quando me interessado – desenharia uma porta maior. com um sistema de alarme contra intrusos. como nos aeroportos. permitindo apenas a entrada de pessoas de bem – ou então uma porta giratória. quem não visse por bem. girava e saía pelo mesmo lado por onde entrou – no meu mundo. onde eu existo de verdade. sei que. sempre que alguém entra. trará mau tempo – estou farto de chuva – perdido. a vontade não basta para recriar o meu habitat. depois da chuva. sempre haverá lama. e depois da lama. os vermes cobrir-se-ão de terra seca – lambo as feridas. tento ser feliz. mas nem assim – terra maldita. aprendeste a reclamar o que não te posso dar – a sorte não existe. busca-se. trabalha-se. e talvez assim a limpeza e a verdade renasçam – e eu que vivo na lua? que fizeste por mim? que sossego me trouxeste? e perdão mereço por ser o que sou? depois deste negrume que se desprende do olhar. o que me sobrará? não me peças para não dizer que isto é viver. não é – quero saber se tu. nesta terra que me impingiste. tens ou não uma razão válida para eu ser assim – se tens coração. dá-me uma razão para ter nascido assim. já que todos que conheço são diferentes de mim – verei o que posso esperar de ti. mas confesso: não espero grande coisa

 



entre a crença e o engano








descubram em vós o medo de nada saber sobre quem vos entra na vida: arrogância. maldade. interesseiro. desequilibrado. cruel. preconceituoso. egoísta. possessivo. intolerante. falso. desonesto. hipócrita. e tantos outros que podia listar – a tudo estamos sujeitos. é a vida – afinal. não sois imunes ao desapontamento – se fôsseis poema. diria: sobrevive-se sem rima – se fôsseis prosa. diria: o sujeito e o verbo não concordam convosco – se fôsseis um haikai. diria: pequeno demais para desistir de acreditar que o homem é tendencialmente bom – se fôsseis inteligentes. diria: não se deixariam enganar – por isso. continuo a acreditar nos que chegam. se for por bem. ótimo – se vier por mal. exorcizo-o e sigo em frente – é a vida. para mim e para vós. caminhar é a solução 



émulo







émulo

-

escolhi o trabalho

por este nojo

a ele me endureço

sofro

 

 

aliado

-

escolhi a escrita

esboço letras ceifadas

a ela me abandono

gozo




greve de escrita








não posso desperdiçar os meus parcos recursos poéticos para um poema. um pensamento ou um haikai – tenho uma história antiga para escrever. preciso de redigir seiscentos mil empregos. e mandar este lápis para novas viagens – ontem. em guimarães. d. afonso henriques ajoelhava-se. parvo. como se rezar alterasse a estupidez desta gente sem vergonha – fabricam comboios rápidos para quem tem tempo de sobra e não vai a nada nenhum – estou em greve de escrita – só bebo água e palavras revoltadas



saiu para a rua








hoje estou sem inspiração. completamente out – liguei a música. procurei na discoteca do PC um ritmo que me arrancasse desta roda de inércia – a tristeza está a dar comigo em doido. talvez mais que doido. até as pastas do meu computador já conhecem este distúrbio de personalidade – bem. adiante. na busca encontrei rui veloso. estava ali. parado. com ar de quem teve um dia  de merda – zangado e sem paciência. amarrei-me a uma música e saí para a rua – vesti calças e um casaco escuro. agarrei na carteira castanha e saí sem direção – decidido a perder-me numa trepa cheia de loucura – deixei para trás os preconceitos e imaginei tudo o que ainda não tinha conquistado: uma mulher enorme. de corpo pronto a procriar – olhos azuis. cabelos loiros. mãos finas de manipuladora de corações – um às na cama. selvagem – parei no teatro chile. passei um pouco de batom para o cieiro. um leve toque de creme de coco e. mesmo inseguro. parti pelas ruas – andei. andei. mas nada se passava – cansado. tirei a gravata e devolvi ao rosto a luxúria – foram muitos anos sem sentir nada – continuei a caminhar. a noite quente atiçava a humidade guardada entre as dobras da insegurança – sorriu-me uma mulher. com lívido a senti. mas isso já não importa. toda a humidade quente da loucura acabou em afrontamentos – afinal. era fácil de resolver. tantos anos. tantas noites… – entrei na pensão estrela. frequentada por gente que procura acabar com as fantasias. aluguei um quarto com vista para a rua – inseguro. com tremores. deixei-me sucumbir aos braços daquela desconhecida

*letra de uma música de rui veloso – saiu para a rua – adaptada a



entulhei todo o entulho








entulhei todo o entulho guardado nos neurónios – fiz uma trouxa enorme. deitei-a à cabeça e saí para a rua – estava entulhado de caminhos amealhados ao longo de um tempo que não contou para o meu tempo – escolhi um – descalcei os sapatos. precisava de sentir as pedras que um dia foram apenas minhas – caminhei. caminhei. sem saber onde parar – tão cansado por nada saber do caminho que escolhi. a trouxa. feita com lucidez empírica. levava todo o entulho que um dia foi relevante – continuei a caminhar – a trouxa. desconfiada. começou a perder consistência – abriu-se – talvez por temor. talvez cansada da viagem – o entulho. que até então era uma peça só. começou a cair aos pés descalços – o caminho deixou de ser caminho – nas pedras centenárias. cravavam-se as garras de uma trouxa feita em mil bocados: o crânio inchava. e os olhos perdiam-se das orbitas.  as unhas cresciam. a língua batia num peito ferido por garras que queriam vida. simples. o cabelo saltava. a trouxa também. e a espuma no canto da boca continuava a afirmar: o período de nojo ainda não tinha passado – o corpo era agora menor que a trouxa – senti uma mão tocar-me  e dizer-me: está na hora da injeção contra a raiva. o passado já passou. é hora de voltares para a cama e descansar – os teus inimigos já estão todos a dormir – nos autofalantes do manicómio ouviu-se:  as luzes apagam-se às vinte e duas horas. quero todos os loucos na cama – e tu. sim. tu. que está com a trouxa. és igual a todos os que aqui estão. mas talvez melhor do que muitos que não estão – tirei as calças. calcei umas sapatilhas de correr e parti para outra rua. sem entulhos




escrita em risco - vulcão









em terra. continua a mesma bandalheira

 

apenas alguns versos fazem chorar os leitores

 

..............................prosas encerradas

 

.............................luso

 

...................aéreo

 

.....obstruir o espaço

 

a

 

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antes do pó - prosa









silêncio total. a solenidade resiste. ainda é urna. a madeira está intacta. encerada. os bronzes polidos. as cordas sedosas. e os castiçais perfilados – o momento é como imaginei – as feições são brisas. as palavras misturam-se. ora agradáveis. ora. desprezantes. escuto-as com dificuldade. fazem doer mesmo um morto – sei que as palavras largadas ao vento nunca têm destino certo. mas estas tinham. eram para o morto – mutantes. saem da boca com um sentido. e chegam com outro. algumas assassinam o caráter. mas o bom. que é amigo do ótimo. é que podem entende o que quiser. para o emissor. elegantes. para o morto. falsas – ouço-as. algumas melodias. marcha fúnebre de chopin. outras. talvez hallelujah do leonard cohen – mas as mais divertidas são as curiosas: afinal do que faleceu? talvez de desgosto – afinal. morrer não acontece todos os dias. é obrigatório aproveitar estes momentos. um morto também se pode divertir – coitado. afinal de que embarcou? também é preciso ter galo – foda-se. logo hoje que está tão mau tempo. vamos apanhar uma molha – que me importa se vou tapado. quem estiver mal que espere pelo próximo defunto – mas também há palavras agressivas e hipócritas. mesmo depois de morto. temos que as ouvir e aguentar para não fazer do nosso funeral uma batalha campal – nem depois de morto temos sossego – sabem que é a última oportunidade para magoarem – usam todo o veneno e. sem dó nem piedade. jogam-lhe no ouvido tudo que não tiveram coragem de dizer cara a cara – depois. sentem-se bem. desabafaram – eles não sabem. mas já estão mortos há muitos anos. nunca viveram – afinal. estão cada vez mais perto do que sempre foram. nunca tiveram vida – de seguida ouve-se os que estão ao lado do falecido: coitado. tão bom homem. uma perda enorme para quem tão bem o conhecia.  como eu. nem sei quem é. mas pelo menos é simpático. talvez apenas um pouco mentiroso – tenho pena é dos filhos. tão jovens. éramos muito amigos. vai-me fazer falta – filho de uma gradíssima… mentiroso. nem próximos éramos – é por esta altura que me arrependo de estar morto. se soubesse que estes cabrões apareciam. tinha evitado morrer a um fim-de-semana – esta malta não falta ao trabalho para um funeral. mas ao fim-de-semana não tem para onde ir – mas também são tantos. que alguns destes cromos iria aparecer – que se fodam todos – bonito é o alinhamento das campas. perfiladas. todas com mortos. só o nome é que difere – também gosto das lápides. sempre com saudades eternas da esposa. filhos. noras. netos e restante família – é na restante família que torço o nariz. a maior parte deles nem conheço. e não tenho saudades de conhecer – agora. nada posso fazer. estou deitado nesta caixa retangular – talvez as medidas não tenham sido bem tiradas. estou apertado e sem ar – até os sapatos me apertam. espero bem não ter uma bolha – a almofada também é uma merda. alta e dura. está a dar-me cabo do pescoço – não sei como se esqueceram de trazer a almofada ortopédica – o pano rendado que me cobre. feito de fibras sintéticas. faz-me comichão na ponta do nariz – se espirrar a culpa não é minha – estou com medo. esta gentinha é bem capaz de fazer respiração boca a boca – mas muitos fugiriam com medo que eu soltasse a língua – não quero voltar à vida – aqui pelo menos tenho silêncio e tranquilidade – um anjo já me disse que depois das cerimónias fúnebres levam-me para outra dimensão. não sei é o dito céu. mas se for para o inferno também vou bem. aquilo está cheio de festas e todos os dias há sunset virado para a terra – a minha última morada está virada a sul. e tem um eucalipto por perto a guardar-me sombra – quero o sol pelas costas. estou farto que me cegue. quero ver o futuro. mesmo que seja debaixo da terra – mas se tivesse pensado bem. tinha pedido para ser cremado. e já não tinha que aturar os cromos. era uma cerimónia só para a família chegada – o fogo queimaria todos os vermes e impostores que carreguei durante o tempo em que estive pré-morto

 


antes do pó - poesia








desce a ex-vida

desce

desce

 

descem lágrimas

sobem lembranças

descem as despedidas

sobem as saudades

descem os amuos

sobem as virtudes

descem as fraquezas

sobem as forças

 

todos os que partem são bons

apenas a mentira prevalece incólume

 

desce

desce

 

descem sons aflitos

no buraco. o silêncio pesa. eterno

dentro da urna. a revolta

 

reviro-me

reviro-me

 

ouço além de um qualquer muro

o barulho abafado dos que me choram

calado pela terra imunda que me pisam

 

grito

grito

 

cai a primeira pá de terra


outra

outra

 

o buraco está meio cheio. meio vazio

as flores alinham-se nas mãos da multidão

serão elas a enfeitar a memória

 

grito
grito

 

quero ser cremado

não suporto mais terra

 

o fogo mata todos os vermes

 


espaço sideral







nasce vida. derrota a escuridão

as forças do bem

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a luz é calor. brilha para lá do olhar

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as brumas voltam a ganhar

solta-se o império do mal

 

a vida gira. como bem sabia galileu

do negro nascem os quadrados

devoram as formas redondas

sem arestas. tornam-se frágeis

no movimento da imaginação

tão pequeno

este espaço sideral

 


bancos [de] [com] jardim







pintada de fresco

abre-se a primavera

 

bandos renascem da memória

 

são elas

 

lustrosas e ditosas

retornam à luxúria

vivida no passado

 

soltam-se as paixões

alegria das noites quentes

aos olhos. o doce amor

na mente. o infinito eterno

 

voo nas asas

 

o êxtase

dos sem-abrigo

sonham com o partir

mas o banco...

 

é o único amor




ground zero







o relógio da torre da igreja marcar horas com aquele barulho insuportável é um inferno – o toque a defunto. ainda me irrita mais – é mesmo necessário anunciar a partida de alguém? só para não ouvir o sino. preferia que ninguém morresse. ou que morressem noutra terra – os sinos repicam. para a missa das oito – repicam. para a missa do meio-dia – repicam. para a missa das quatro – repicam para a missa das oito. em maio. repicam às vinte e uma para o mês de maria. e não podemos esquecer. que no dia da ceia. repicam à meia-noite para a missa do galo – que raio é que a igreja tem tanto para dizer? a minha cabeça vira-se do avesso. só me apetece dar uma chumbada à torre do sino - um dia destes. monto uma bicicleta e atiro-me contra a torre do sino - quero fazer um ground zero com um grande monumento à torre do sino - tenho é medo que o sino me acerte em cheio. azarado como sou. ainda apanho com o badalo nas trombas



bola de berlim









não sei se por aí faz noite

por cá

olho para dentro de uma bola de berlim

a lua traz desejos primitivos

bem queria ser vampiro

mas vivo sozinho

salivo

louco como estou

vou chupar-lhe o creme

a massa

sucumbirá com os primeiros raios de luz

e eu também

com diabetes

 

as formigas aparecerão mais tarde

como lembrança do que se foi

devorando com prazer

 



agora. pari uma sebenta








agora. essas palavras

tão ordenadas. parecem frágeis

enfatuadas. como fantasmas vagos

que buscam alma. mas falham os detalhes

 

agora. o vento sopra forte

como katrina. sem ordem. sem sorte

as letras dançam. sem saber seu abecedário

mas seguem. sem rumo. em espiral imaginária

 

agora. desarrumo os pensamentos

louco como o desejo nos seus momentos

junto os cacos da mente. recompondo-me

mesmo o caos. para no fim. reinvento-me

 

agora. tudo está sólido. como aço

dos estaleiros de gdansk. pesado no abraço

forjado na força. sem desatino.

seja na guerra ou no destino

 

agora. ergo um castelo de palavras

em epístolas. de desejos sem amarras

sórdidos. mas com a beleza da noite

festejando o efêmero que em mim açoite

 

agora. pari uma sebenta

versos que se arrastam. mas tentam

colocando o caos em ordem. em sua essência

transbordando em pura existência




passei um. passei dois. passei três. passei quatro...







passei um

passei dois

passei três

passei quatro

passei cinco

passei seis

passei sete

passei oito

ia já nos duzentos

e…

um verbo minúsculo  - atravessar - apareceu

ninguém o tinha chamado

travei… apanhei o verbo despistar

capotei

rebolei

embati na primeira pessoa do verbo morrer

continuei a desenhar figuras geométricas

rectângulo com os ângulos em bronze

apanhei a segunda pessoa

Ia ao lado do às de trunfo

do verbo paralisar

gerou-se uma confusão

apareceu o verbo socorrer. chorar. ajudar. mutilar.

entre outros. que nada tinham a ver com a história

a língua portuguesa é assim

dá camões

não tivesse ele apenas um olho