nem sei como o que te dizer! não contava nunca
estar nesta situação de falar de mim – sou ao contrário dos que comigo
partilham o dia-a-dia. muito reservado. talvez porque duvido sempre do que
penso. e por arrasto. duvido da forma como transformo o pensamento em escrita –
dúvidas que crescem comigo – gostei de deixar-me levar pelo arrasto das tuas
ideias. foi bom saber que alguém é capaz de tentar perceber o contexto das minhas
palavras. tanto na dor. como na esperança. na desilusão. ou até no desabafo
literário – passei a acreditar que ainda é possível entregar a alma em palavras
sem nunca deixar de ser o que sou. principalmente. depois da escrita ser
largada ao vento – és agora. também tu. uma fiel depositária de muito do que
sou nas palavras – um dia. reclamarei de ti a devolução. não das palavras
escritas. mas essencialmente da voz com que as guardas – nesse dia. falaremos
sobre todas as coisas que ainda possamos descobrir com os novos desafios
literários. que por certo virão – com este convite fizeste-me recolher à minha
tábua da escrita. imaginei como seria eu no meio de tanta gente. como evitaria
corar. como vos diria que eu não sou eu – como seria ler sob vosso olhar? sou apenas
a contracapa de um personagem que nasce na escrita e morre ao amanhecer – a luz
desfaz os sonhos dos vampiros das palavras – serei merecedor de uma estaca de
madeira no coração? morrerei continuamente para poder escrever sobre a
desilusão? nesta ilha. que é só minha. cercada de livros e mar. onde as
gaivotas choram por cada barco que parte. o silêncio do mar cumpre-se sempre – aqui
há silêncio mesmo no ruído – o mar sabe que este pedaço de terra que inventei.
serve apenas para repousar o corpo da morte – aqui. as marés obedecem a um
ritual antes de partirem de vez: chamam-me pelo nome. e deste mundo. ao teu
mundo. o mar nunca acaba – o que sei é que até as gaivotas preferem morrer
comigo – conhecemos cada rosto. e em cada um reconhecemos um pouco do nosso rosto
– as faces. aqui. na minha ilha. estão todas rodeadas de mar. mesmo quando coloco
os olhos no chão. com vergonha. tu sabes que escrever é um abismo – a ilha será
sempre o refúgio onde o sal e a humidade se entranham nos ossos – talvez um dia.
eu arranje um barco para me levar desta minha ilha. criada pela imaginação. para
conseguir estender uma passadeira de palavras a este mar que me divide o tempo
– e aí sim. essa tua vontade será também a minha. e mesmo que o mar se revolte na
ilusão. caminharei sobre as palavras. como jesus caminhou nas águas. levando ao
mundo as letras que inventei
27/06/2010
sábado
sexta-feira
sexta-feira. todos os livros continuam em cima da minha
tábua de escrita. tomaram outra forma. sabem que o fim-de-semana chegou. um
tempo mais longo e mais livre – é um espaço temporal que dá para ganhar uns
pozinhos de bem-estar – estes livros. carne da minha carne. sabem quanto tempo me
ocuparam. uns riem. outros continuam sérios. outros incharam. como que a dizer
que continuam prenhes. outros ainda. catam os capítulos que podem fazer de mim um
pouco mais feliz. como as mães de antigamente. que penteavam os filhos à
soleira da porta – outros livros. discretos. assobiam. parecem distantes.
gostam de se fazer de difíceis. mas no fundo. no fundo. morreriam por um minuto
nas minhas mãos. sabem que guardo para eles sempre um carinho. num bolso
escondido por detrás de uma costela. talvez a de adão – por último. sobressaem os mais ousados.
desesperados digo. pelo tempo que sobreviveram na obscuridade. suportaram todos
os livros que vivem perto de mim – estes mostram as suas partes mais íntimas.
são livros parados no tempo. no tempo deles. e no meu. que se torna cada vez mais
escasso. tudo fazem para ter um lugar nas minhas mãos. ávidos de sentir o suor
a passar página a página – o meu olhar. no entanto. mantém-se distante. indiferente.
como um pai que gosta de todos os filhos – não escolho os livros. eles são tudo
o que eu tenho. filhos que adotei para prolongar a vida. a minha de leitor. e a
de quem os escreveu – para todos tenho uma leitura. e todos são agora um pouco
de mim – é o dia que escolhe um livro. e não o livro que faz o dia – hoje.
estou comigo. apareceu um vento quente do sul. vento sudeste. dizem que traz as
areias revolvidas pelos homens do saara. beduínos que criam apenas ovelhas e
cabras. e carregam nas vestes brancas. que escondem linhagens e todas as histórias
de um passado – sabem-no apenas. porque sabem ler o movimento das areias. e ao
contrário dos livros. eles fazem passar de boca em boca a história da sua vida –
eu terei um livro para contar a minha história. e quando partir em direção ao
universo. deixarei o que resta de mim dentro de um monte de areia solta ao
vento – já tenho um livro especial: o álbum onde eu cresci. pelas mãos de quem
queria registar tudo o que me propus fazer – o primeiro ano com um fato azul e
branco às riscas. parecia um marinheiro. talvez tenha começado aí o meu gosto
pelo mar. depois a minha primeira comunhão. de joelhos. sobre uma almofada
bordeaux. seguro uma cartilha que me garantia para todo o sempre a companhia ao
lado de deus – o fotógrafo via-me no futuro. eu olhava para um espaço vazio. tal
como eu – e assim fiquei. a olhar para o mundo até aos dias de hoje. ninguém
precisava de saber o turbilhão de demónios que já moravam em mim. transfigurados
em dor – fui crescendo. e até de cowboy apareci. tinha um ar simpático. trazia
um lenço vermelho amarrado ao pescoço. e o chapéu de alguém que nunca tinha sentido
o cheiro de uma pradaria – a estrela de xerife mostrava um respeito que eu não
sentia. mas as pernas não paravam de crescer. e de todas as fotos. há aquelas
que um dia espero ainda vir a gostar. porque mostram o mundo que me fez crescer.
não importa se bem. ou mal: a família. os amigos. os carros. os colegas de
escola. depois perdi-me. e nunca mais soube onde me procurar – de todas as
fotos. há uma que guardo em mim com carinho. estava na praia. tinha a meu lado
todos os ingredientes para o meu primeiro sonho: o baldinho. a pá. o engaço. o
regador. e até as forminhas para poder construir casas e castelos. com fadas. e
talvez até o peter pan – naquele areal o mar era meu. as gaivotas voavam sobre
mim. e tudo me parecia imenso diante da minha pequenez. os sons eram como se
tivessem nascido dentro de mim: o das marés. a bola que corria de encontro ao
mar. que sempre devolvia. como se dentro dele já existisse tudo o que bastava. o
homem carregado de línguas da sogra. e a sarronca a anunciar o nevoeiro – dentro
desta moldura no tempo. recordo-me nu. nada me protegia. talvez porque nada fosse
realmente importante. ou talvez porque foi assim que nasci. e foi este mundo
que me trouxe até hoje – se nu estava. nu permaneço. escrevo esta sexta-feira. diante do vento
quinta-feira
faltam vinte e quatro horas para que a sexta se
dissolva no sábado – penso nas minhas gaivotas. sei que voltarão ao fim do dia.
trazendo nos olhos um mundo: as marés. os barcos. as varinas. e a faina dos
homens do mar – nunca percebi se estes homens deixam as mulheres órfãs. ou se. ao
regressarem. é o mar que fica órfão – penso na minha mesa de escrita. começo a
imaginar tudo que deixei em aberto com a semana – lembro-me de deixar um arpão
a marcar a página de um livro. tinha um poema maldito para mandar a um amigo que
me tem tratado como inimigo – esta maleita de perder um camarada que ainda ontem
era carne da minha carne. é muito doloroso. penso que partiu por causa de uma
gaivota de sapato alto. sem avental. sem porto seguro. quer apenas um mar revolto.
mas será sempre uma gaivota de falésia. presa às rochas e ao sopro húmido do vento
marítimo. não sentirá aquele prazer de se sentar num rochedo no meio do mar. e vociferar
o seu nome a todas as sereias que as ondas encobrem – muitas vezes perdemos
gaivotas que tinham um nome dentro de nós. entram para um mar que não é nosso.
foram em busca de pedaço de terra prometida – também elas andarão perdidas. levarão
consigo a solidão dos dias de inverno – um dia. vou mostrar que venho ao mar não
apenas para contar estrelas. venho limpar-me dos males do mundo. purificar-me –
ao lado. um pisa-papéis. dentro. uma cabana de pescador aprisionada no vidro. perdida
no meio de uma onda. talvez a casa de um homem sem gaivotas. sem terra à vista.
sem nome. perdido de si e da vida – tudo parece imperfeito demais para não ter
mar nem gaivotas – arrasto a imagem para perto dos olhos. apetece-me contar-lhe
um segredo. não é um grande segredo. foi apenas um amor que perdi quando
aprendia as letras. perdi a criança que vivia dentro de mim –nesse dia.
lembro-me de ficar sozinho. sentei-me à beira do precipício. abri o alforge do conhecimento.
de lá tirei um pão com marmelada. embrulhado num pano tecido por mãos com
futuro: as da minha mãe – duas inicias bordadas a linha dourada: SR – as letras
mais bonitas que alguma vez vi. sobressaíam num pano que bem poderia ser a
camisa de meu pai. ou a calças rasgadas do meu irmão – mesmo sozinho. eu tinha
aquelas letras para me defender de todas as brisas que me empurrassem para
norte – escolhi duas lágrimas para aliar da pressão. as melhores. as mais
dolorosas. mas também as mais límpidas e genuínas – cravei o retalho no peito a
fogo e com um anzol de pescador. cosi em cruz as linhas da minha vida – nesta
tábua. tenho ainda uma pilha de livros. enorme. vivem lá autores que nunca
poderei ler. escrevem coisas felizes. coisas que eu nunca irei saber. mas a
pilha continua a crescer. tapa-me a janela que me mostra o passado. o que é bom
– é uma janela a norte. nunca por lá vi uma gaivota. mas foi ali que nasci para
o que sou hoje
quarta-feira
hoje
não me apetece escrever. estou com uma dor de cabeça infernal. nem suporto o
barulho das teclas a bater – olho para trás e não encontro nada que me alivie o
peso dos dias. olho para a frente e sinto o drama do sangue nas pontas dos
dedos. vou acabar frustrado comigo – estou parado diante de um papel que me
parece imaginário. mas eu sei que ele existe. há um fio que traz corrente elétrica.
de dentro desse poste imenso. que um americano visionário vendeu ao mundo. há uma
infinidade de circuitos interligados. faíscam entre si. iluminam tudo – o papel
fica luminoso e as palavras nascem com um pensamento que. afinal mais não é do que
mãos raivosas a excomungar o mundo – eu também sou uma invenção foleira. não de
um punhado de dólares imperialistas. mas de um escudo que deveria ser orgulho.
mas não passa de uma ilusão vazia – tenho aqui uma treta de uns bonecos dentro
de mim que se acendem quando liberto a energia. falta-me um estabilizador de
corrente para manter os neurónios alinhados com os mãos – estes bonecos de
feitios distintos muitas vezes entram em conflito – são implacáveis! uns pensam
que escrevem. outros que sabem ler. outros imaginam-se cientistas de régua e
esquadro. dizem que inventam. mas não vejo futuro no pensamento improdutivo.
outros ainda são uns cabeças de vento que não querem fazer coisa nenhuma – para
estes. onde houver um chaparro alumiado por um fusível de 220 volts. é onde
dormem melhor. apenas se perdem em divagações inúteis – quando estes irmãos fusíveis
se incendeiam. bem. nada segura os bichos dos eletrões e protões. comem-se uns
aos outros – esta bonecada cheia de energia é mais intensa quando acordo irritado.
mando tudo para aquela parte. falo sozinho. a barba são quatro navalhadas com
dois cortes profundos. e até o champô tem um cheiro horrível – o dia vai ser diabólico.
e de toalha à cinta seco o corpo enquanto leio emails. em suma. discuto com
todos e a todos digo que não sou um estorvo – tudo me corre melhor a partir do
momento em que a eletricidade se transforma em faísca no caminho dos outros.
digo cobras e lagartos e viro o mundo de pernas para o ar – os sonetos são um tédio.
os poemas exalam um amor pegajoso. o mar e as ondas enrolam-se na lua cheia.
que nunca conseguiu iluminar coisa alguma. nada me parece interessante – até o jornal
regional que compro pela manhã para saber dos mortos da terra está um desastre.
hoje. não morreu nenhum figurão. vamos ver amanhã – começo a sentir-me mais mortiço.
bebo dois cafés expressos de um só gole e sinto novamente a ira a tomar conta
de mim – sinto todos os nervos em curto-circuito. mas chego à conclusão que sem
a merda desta engrenagem não escrevo coisa nenhuma – começo a ficar triste. as
palavras cada vez são menos minhas. é mais uma dor que chega quando a energia
não é suficientemente forte para alimentar as mãos que teclam – é a maldição da
quarta-feira. o mar está para lá distante. e até as minhas gaivotas estão para
a faina – estas. saem no começo da semana e seguem os barcos para dentro do
nada. sabem apenas que têm que comer para poderem vir a terra de quando em vez
– também eu. saio pela manhã. o livro dos afazeres tem na primeira página em
letras grandes: segue em frente. tens que chegar ao fim-de-semana para reveres
as tuas gaivotas
terça-feira
quero escrever. mas as mãos estão trémulas. não
sei se é medo de saber que o que tenho para escrever é igual ao dia anterior.
ou porque a arte é reduzida – a diferença é que este dia vem sucede a
segunda-feira. começa com o amanhecer – obrigações deixam-me sempre angustiado
– o dever sempre me aborreceu. deixa na boca um gosto a fel – ainda não percebi
o porquê de gostar de escrever. deve ser um vírus qualquer – ontem respondi a
uma mensagem de uma amiga que me questionava sobre esta mania. respondi que escrevo
para me sentir mais próximo de quem me compreende – esta é a melhor definição
para alguém como eu. estar próximo de quem me entende sem nunca ser parte desse
grupo – por isso escrevo. gosto de escrever. e assim sentir que a minha verdade
pode viajar como bem entender – gosto de sentir em cada adjetivo a verdade da
ocasião – este é o risco de quem escreve o presente com base no passado –
escrevemos sempre o agora – mergulho
em mim e trago para as mãos tudo o que pode interessar aos meus seguidores.
para que possam compreender os meus ‘eus’. aceitando ou rejeitando aquilo que
sou e o peso de cada palavra – vomito-as das minhas angústias para este papel outrora
branco – há dias que estou tão só que apenas quero ver as minhas palavras no
olhar dos outros. acredito que me escutam – é neste desespero que volto para
dentro de mim. tentando encontrar um pouco mais do que escapou. outras vezes apenas
para me esconder do mundo – a dor aqui é muito séria. crua. mas é quando aceito
com custo que as escolhas que fiz ao nascer – alguém tudo cresceu mais rápido
que a camisa que um dia quis vestir – translúcida. fluorescente. com um bolso
enorme de tolerância – rasgou-se pela força da desilusão –– mas a dor
persistia. enrosca-se em mim como o polvo de sinbad. da lenda dos sete mares. e
as noites são lutas intermináveis – nessas noites. a vergonha mata-me. queria
tanto ter força para deixar de sofrer. para rasgar o papel que afinal era uma
carta cheia de desculpas – nessas noites. a dor era tão forte. que todo eu
chorava. não apenas os olhos. mas as entranhas. os ossos. a espinha que me
mantinha curvado. e das mãos desprendiam-se pedaços de carne herdados de uma
família que esperava mais de mim – e eu desfeito. rasgado de cima a baixo.
estripado de tudo que me fazia ser eu. aquele que sempre se entregou ao amor
pelo amor – a noite consumia tudo que eu tinha. para além da própria dor. e. no
meio dela. apenas me restava a força para abrir os olhos com o sol da manhã – como
queria ser feliz. mas parecia-me tudo tão distante – as soluções estavam. além
de uma montanha que eu próprio construi – a última vez que alguém me garantiu
essa não solidão. obrigou-me a levar uma cartilha branca. uma vela de cera
rendada em laço de seda da índia. estava eu de calções de veludo. e com um laço
apertava a camisa de folhos. nos olhos. a esperança de quem acreditava que tudo
fosse verdade
segunda-feira
segunda-feira. o despertador alerta-me para a realidade.
levanto o corpo duma cama que me guarda todos os sonhos. mas a alma. essa. fica
de guarda ao que resta dos meus projetos. mistura-se com a roupa suada das
noites loucas de amor – o sol desponta. as gaivotas planam num tempo que parece
sempre igual. e o mar continua a ir e a vir sem lamentos – ponho a cama de pé.
encosto-a à parede inclinada que sustenta o quadro de um artista desconhecido –
a cadeira. que serve de assento às ideias. guardo-a dentro de um guarda-vestidos
– é valiosa. ali descanso a vontade de escrever – meti-a entre uma camisa
branca e um par de calças pretas. roupa que estimo – um dia. que espero tardio.
com uma gravata preta. farão comigo a viagem eterna – do outro lado. virado para
a janela que espreita o sul. o toucador – tem em cima um espelho baço que suporta
o reflexo de toda as minhas debilidades – um dia perguntei aos amigos se gostariam
de conhecer mais um pouco do outro que mora comigo. não ouviram – creio que não
acreditam que dentro dos olhos se escondem outros olhos – apenas as gaivotas.
minhas amigas de longa data. recordam as noites em que choro. embalam-me com as
suas danças sobre o mar – este espelho. preso ao toucador. comprado numa feira
de diversões a um anão que queria ser grande. é o único a ler as minhas lutas
internas. e em cada lágrima vertida a desilusão de não me ver como deveria ser –
o meu destino e a desilusão são companheiros de viagem – mas hoje encerrarei a caminhada
por um tempo. entrarei para dentro do espelho e ali ficarei. protegido do mundo
e de mim. trabalharei sonetos e prosas. talvez um poema com rima cruzada - mas
não. é segunda-feira. preciso de puxar o cabelo para o meu melhor lado. preciso
de estar bonito. o trabalho é coisa séria e só comporta homens sérios – arranjei-me
o melhor que pude. coloquei-me em frente ao espelho e perguntei-lhe: qual era o
humano mais bonito? respondeu-me: a camisa está um pouco amarrotada. e precisas
de um pouco de after shave. old spice – dizem que traz água do mar. e o barulho das gaivotas sobre um oceano que
também te pertence – no fim. cada um faz o que precisa para sobreviver. também
eu cumprirei o meu papel
domingo
domingo. o dia está envergonhado. o sol não é sol.
as nuvens não são nuvens. e o vento. não sendo vento. incomoda o suficiente
para me obrigar a procurar abrigo – mas deixo a minha imaginação à cata dos
ventos perdidos – plantei-a num campo que um dia será de milho. vesti-lhe um
espantalho. pus-lhe uma boina que um dia encontrei num sem abrigo – dizia-se
morto há muito. não tinha relógio desde que se encontrou consigo mesmo. do
passado. só guardava a memória da palmada do dia em que nasceu – ajeitei-lhe a
boina. como quem ajeita a vida. apesar das mãos caídas. acredito que viveram o
suficiente para serem mestras – hoje. de casaco roto. virado do avesso. veste umas
calças aos quadrados azuis. cor dum céu que não é o dele. nem o meu – sinto uma
simbiose com este espantalho – visto-me como ele. só não tenho uma boina para
me proteger das noites frias. a ele faltam-lhe uns sapatos. mas para quê. se nunca
sai do mesmo sítio – um dia deram-me umas sapatilhas brancas. diziam que era
para saltar por cima de palavras perversas – atirei-as muitas vezes contra o
destino – mas guardei-as no bolso dos aborrecimentos. e como prova de que continuo a ser resiliente – sem
elas. não teria a funda capaz de matar problemas gigantes – às vezes também me
sinto um espantalho. umas vezes feliz. outras. volto-me para norte. é de lá que
ouço o comboio apitar. avisando do mau tempo. da chuva e do vento – é domingo. e
não enxergo nada – tenho nos olhos duas tâmaras pretas. trazidas por um árabe que
vende cobras dançarinas – são enormes. diamantes que iluminam todos os que se
afundam em palavras presas em areias movediças – as lágrimas são rios submersos
– águas errantes que com o tempo se tornam amarelo terra – formam os oásis.
libertação para qualquer espantalho – um corvo pousa no meu ombro. diz-me o que
vê com olhos verdadeiros – teima em enxergar o que eu nunca consigo – reclamo
da verdade dos meus olhos. mas ele ri-se – já estás cego há muito tempo
centrifugação
é sábado. as gaivotas perfilam-se além do meu
horizonte – talvez queiram outro mar. talvez outro universo. talvez já não
acreditem neste mundo sem rumo. talvez estejam cansadas de me ouvir. talvez… –
hoje. só tenho uma pequena janela para atirar a alma ao vento – não é uma
janela alta. pelo contrário. ergue-se do chão que todos os dias me engole para
alimentar os seus vulcões –procuro um vento certo. um sopro que leve esta alma de
navegador para além desta guerra entre homens – nu de tudo. por ser sábado. por
tentar descansar. por não querer vestir palavras que não cabem nas desilusões –
quero muito encontrar-me. nem que seja no meio do mar. suspenso entre ventos e
ciclones. subir até ao topo do céu. ao topo de mim. centrifugar-me. juntar os
pedaços dispersos dos meus eus e. para sempre. acreditar que esta nova fusão de
átomos me devolva o que perdi – a idealidade – perseguida tanto que talvez
agora me pertença – qual fantasma da ópera. qual navegador. ou gaivota. sou um
homem-pássaro. sem pecado. sem remissões – sei que voarei alguns dias e no vento
há de derrubar-me – mas que importa – se forem mil dias ou apenas um. importa que
me encontrei. disse adeus ao que fui. marquei com um X a terra que um dia me cobrirá.
tal como sou. tal como nasci – sei que cedo ou tarde cairei. o tempo nunca joga
a favor de ninguém. mas se fui livre. nem que por um instante. então vivi – tal
como o texto
trocaste-me por trinta moedas
é espermatozóide
é embrião
é nado-vivo
é menino
é moço
é senhor
é pai
é avô
é cadáver
é. é isso mesmo. um aborrecimento saber que o tempo se esgota – o que construí para não terminar em vão? diz-me tu. ego de merda. iludiste-me. e agora nem um único travesseiro tens onde possas morrer com os sonhos que um dia imaginaste – não me venhas com ensaios. experiências falhadas. não me digas que isto foi apenas um teatro. um jogo de marionetes. onde eu segurei a corda que encerra a cena. e as pancadas de molière fecharam para sempre a ambição – não. não permitirei que me leves assim. tu prometeste que se eu estudasse. teria o relógio a contar as horas certas. se não dissesse palavrões o céu seria meu. e se me portasse bem. um deus qualquer. montado num cavalo de asas brancas. atiraria ao meu alforge uma lâmpada de aladino. com mais de mil desejos – não posso mais. estou arrasado. mentiste-me. puseste-me num espermatozoide que nunca soube onde queria ir. maluco para ser simpático – esse dia. em que desatei correr. não era amor. era truque. tu. o mágico. e. eu. a ilusão – ainda me lembro de mandares dizer pela catequista que tudo se resolveria com o sinal da cruz e um pai nosso – judas. trocaste-me por trinta moedas e um monte de palavras sem valor. nascidas de um espermatozóide maluco
a morte que sobrevive - II

a morte encontra sempre um caminho para sobreviver –
morro de olhos abertos. morro sabendo que não estou morto. apenas descrente de uma
morte que me obriga a engolir uma dor que não é minha – chegou o momento de
fazer renascer a morte que resiste. nem que mais tarde. volta a morrer
novamente às minhas mãos
a morte que sobrevive - I
a morte é
sempre uma porta de recurso para os desesperados – sinto muitas vezes que não a
tenho como inimiga – pelo contrário – traz-me novamente para dentro de mim a
incerteza de onde estou e para onde vou – agrilhoar o pensamento da morte à
serenidade é alívio. excogitar o seu interior é perceber o caos que existe no
exterior – posso então rir das bestas que pensam que viver acorrentado a um
palavrão é a solução para não viajar– saio muitas vezes zangado para não dizer
fodido – irrito-me pelas promessas que não se cumpriram. é quando preciso de
terminar com tudo. e mandar todos para a puta que os pariu – mas é neste horror
a preto e branco que me penduro na morte. e encontro conforto dentro de mim –
mato-me aos poucos. e quando acordo no enrodilhado dos lençóis. encontro sempre
um pedaço de mim sem vida – mas até isso é uma mentira. que já se habituou ao
despertar do sol. sempre que necessito desse pedaço morto. faço-o renascer às
garras da besta em que me transformei – é assim que saio para a rua:
arrependido. mas vivo. pesaroso das mãos de carrasco. e fico sem saber se
mataram por ser a única opção. ou porque nasceram assassinas. sedentas de dor
em vida e em morte. dentro de mim ou dentro do que não sou – mesmo com esta
insatisfação. continuam a ser minhas. e pela manhã. todos os dias. é nelas que
deposito toda a esperança que me resta depois da ressurreição – escrever a
morte só é possível para quem sobrevive ao terror. ao desconforto. e à
mutilação do que carrego em mim por ser quem sou – as mortes também renascem em
mim. basta a luz partir e o sol negro aparecer – sobrevivem como repteis.
sempre diferentes. sempre iguais. como todas as coisas mutáveis deste mundo –
eu também me sinto diferente. todos os dias nasço. e todos os dias me
transformo
17/06/2010
o peso das palavras
se hoje me apetecesse escrever. seria uma
carta aberta – o papel seria pardo. a tinta vermelha. e assim. quem a lesse sentiria
o inferno que tenho dentro de mim a arder – este inferno sobrevive além dos
limites da minha imaginação e morre na raiva do que vejo e nada posso fazer –
resta-me devorar os dedos. os olhos. a fome de todo o mundo: o egoísmo. o
desemprego. a incúria. a corrupção. a malvadez do meu semelhante. que reduz o
homem a nada mais do que um animal primitivo – luther king disse: grave. grave
é o silêncio dos bons – sei que escrevo um monte de palavras sem interesse. mas
não me calo. mesmo não sendo ouvido
olhar negro
eu tenho o meu mundo. um que invento todos os
dias. sei que por vezes não planto nele humanos. só animais. os que me aceitam como
sou – mas confesso. às vezes gostava de ter outro mundo. um suplente. um que fosse
meu e vosso. mas apenas quando me interessado – desenharia uma porta maior. com
um sistema de alarme contra intrusos. como nos aeroportos. permitindo apenas a entrada
de pessoas de bem – ou então uma porta giratória. quem não visse por bem.
girava e saía pelo mesmo lado por onde entrou – no meu mundo. onde eu existo de
verdade. sei que. sempre que alguém entra. trará mau tempo – estou farto de chuva
– perdido. a vontade não basta para recriar o meu habitat. depois da chuva. sempre
haverá lama. e depois da lama. os vermes cobrir-se-ão de terra seca – lambo as
feridas. tento ser feliz. mas nem assim – terra maldita. aprendeste a reclamar
o que não te posso dar – a sorte não existe. busca-se. trabalha-se. e talvez
assim a limpeza e a verdade renasçam – e eu que vivo na lua? que fizeste por
mim? que sossego me trouxeste? e perdão mereço por ser o que sou? depois deste negrume
que se desprende do olhar. o que me sobrará? não me peças para não dizer que
isto é viver. não é – quero saber se tu. nesta terra que me impingiste. tens ou
não uma razão válida para eu ser assim – se tens coração. dá-me uma razão para
ter nascido assim. já que todos que conheço são diferentes de mim – verei o que
posso esperar de ti. mas confesso: não espero grande coisa
entre a crença e o engano
descubram em vós o medo de nada saber sobre quem vos entra
na vida: arrogância. maldade. interesseiro. desequilibrado. cruel. preconceituoso.
egoísta. possessivo. intolerante. falso. desonesto. hipócrita. e tantos outros
que podia listar – a tudo estamos sujeitos. é a vida – afinal. não sois imunes ao
desapontamento – se fôsseis poema. diria: sobrevive-se sem rima – se fôsseis
prosa. diria: o sujeito e o verbo não concordam convosco – se fôsseis um haikai.
diria: pequeno demais para desistir de acreditar que o homem é tendencialmente
bom – se fôsseis inteligentes. diria: não se deixariam enganar – por isso.
continuo a acreditar nos que chegam. se for por bem. ótimo – se vier por mal. exorcizo-o
e sigo em frente – é a vida. para mim e para vós. caminhar é a solução
émulo
émulo
-
escolhi o
trabalho
por este nojo
a ele me
endureço
sofro
aliado
-
escolhi a
escrita
esboço letras
ceifadas
a ela me
abandono
gozo
greve de escrita
não
posso desperdiçar os meus parcos recursos poéticos para um poema. um pensamento
ou um haikai – tenho uma história antiga para escrever. preciso de redigir
seiscentos mil empregos. e mandar este lápis para novas viagens – ontem. em
guimarães. d. afonso henriques ajoelhava-se. parvo. como se rezar alterasse a
estupidez desta gente sem vergonha – fabricam comboios rápidos para quem tem
tempo de sobra e não vai a nada nenhum – estou em greve de escrita – só bebo
água e palavras revoltadas
saiu para a rua
hoje estou sem inspiração. completamente out – liguei
a música. procurei na discoteca do PC um ritmo que me arrancasse desta roda de inércia
– a tristeza está a dar comigo em doido. talvez mais que doido. até as pastas do
meu computador já conhecem este distúrbio de personalidade – bem. adiante. na busca
encontrei rui veloso. estava ali. parado. com ar de quem teve um dia de merda – zangado e sem paciência. amarrei-me
a uma música e saí para a rua – vesti calças e um casaco escuro. agarrei na
carteira castanha e saí sem direção – decidido a perder-me numa trepa cheia de
loucura – deixei para trás os preconceitos e imaginei tudo o que ainda não
tinha conquistado: uma mulher enorme. de corpo pronto a procriar – olhos azuis.
cabelos loiros. mãos finas de manipuladora de corações – um às na cama. selvagem
– parei no teatro chile. passei um pouco de batom para o cieiro. um leve toque
de creme de coco e. mesmo inseguro. parti pelas ruas – andei. andei. mas nada
se passava – cansado. tirei a gravata e devolvi ao rosto a luxúria – foram
muitos anos sem sentir nada – continuei a caminhar. a noite quente atiçava a
humidade guardada entre as dobras da insegurança – sorriu-me uma mulher. com
lívido a senti. mas isso já não importa. toda a humidade quente da loucura
acabou em afrontamentos – afinal. era fácil de resolver. tantos anos. tantas
noites… – entrei na pensão estrela. frequentada por gente que procura acabar
com as fantasias. aluguei um quarto com vista para a rua – inseguro. com
tremores. deixei-me sucumbir aos braços daquela desconhecida
*letra de uma música de rui veloso – saiu para a rua – adaptada a
entulhei todo o entulho
entulhei todo o entulho guardado nos neurónios – fiz
uma trouxa enorme. deitei-a à cabeça e saí para a rua – estava entulhado de caminhos
amealhados ao longo de um tempo que não contou para o meu tempo – escolhi um –
descalcei os sapatos. precisava de sentir as pedras que um dia foram apenas minhas
– caminhei. caminhei. sem saber onde parar – tão cansado por nada saber do
caminho que escolhi. a trouxa. feita com lucidez empírica. levava todo o
entulho que um dia foi relevante – continuei a caminhar – a trouxa.
desconfiada. começou a perder consistência – abriu-se – talvez por temor.
talvez cansada da viagem – o entulho. que até então era uma peça só. começou a
cair aos pés descalços – o caminho deixou de ser caminho – nas pedras centenárias.
cravavam-se as garras de uma trouxa feita em mil bocados: o crânio inchava. e os
olhos perdiam-se das orbitas. as unhas
cresciam. a língua batia num peito ferido por garras que queriam vida. simples.
o cabelo saltava. a trouxa também. e a espuma no canto da boca continuava a afirmar:
o período de nojo ainda não tinha passado – o corpo era agora menor que a
trouxa – senti uma mão tocar-me e
dizer-me: está na hora da injeção contra a raiva. o passado já passou. é hora
de voltares para a cama e descansar – os teus inimigos já estão todos a dormir –
nos autofalantes do manicómio ouviu-se: as luzes apagam-se às vinte e duas horas. quero
todos os loucos na cama – e tu. sim. tu. que está com a trouxa. és igual a
todos os que aqui estão. mas talvez melhor do que muitos que não estão – tirei as
calças. calcei umas sapatilhas de correr e parti para outra rua. sem entulhos
escrita em risco - vulcão
em terra. continua a mesma
bandalheira
apenas alguns versos fazem
chorar os leitores
..............................prosas
encerradas
.............................luso
...................aéreo
.....obstruir o espaço
a
á
t
s
e
o
ã
c
l
u
v
o
d
o
m
u
f
o
antes do pó - prosa
silêncio total. a solenidade resiste. ainda é urna. a
madeira está intacta. encerada. os bronzes polidos. as cordas sedosas. e os
castiçais perfilados – o momento é como imaginei – as feições são brisas. as
palavras misturam-se. ora agradáveis. ora. desprezantes. escuto-as com
dificuldade. fazem doer mesmo um morto – sei que as palavras largadas ao vento
nunca têm destino certo. mas estas tinham. eram para o morto – mutantes. saem
da boca com um sentido. e chegam com outro. algumas assassinam o caráter. mas o
bom. que é amigo do ótimo. é que podem entende o que quiser. para o emissor. elegantes.
para o morto. falsas – ouço-as. algumas melodias. marcha fúnebre de chopin.
outras. talvez hallelujah do leonard
cohen – mas as mais divertidas são as curiosas: afinal do que faleceu?
talvez de desgosto – afinal. morrer não acontece todos os dias. é obrigatório
aproveitar estes momentos. um morto também se pode divertir – coitado. afinal
de que embarcou? também é preciso ter galo – foda-se. logo hoje que está tão mau
tempo. vamos apanhar uma molha – que me importa se vou tapado. quem estiver mal
que espere pelo próximo defunto – mas também há palavras agressivas e hipócritas.
mesmo depois de morto. temos que as ouvir e aguentar para não fazer do nosso
funeral uma batalha campal – nem depois de morto temos sossego – sabem que é a última
oportunidade para magoarem – usam todo o veneno e. sem dó nem piedade. jogam-lhe
no ouvido tudo que não tiveram coragem de dizer cara a cara – depois. sentem-se
bem. desabafaram – eles não sabem. mas já estão mortos há muitos anos. nunca
viveram – afinal. estão cada vez mais perto do que sempre foram. nunca tiveram
vida – de seguida ouve-se os que estão ao lado do falecido: coitado. tão bom
homem. uma perda enorme para quem tão bem o conhecia. como eu. nem sei quem é. mas pelo menos é
simpático. talvez apenas um pouco mentiroso – tenho pena é dos filhos. tão
jovens. éramos muito amigos. vai-me fazer falta – filho de uma gradíssima… mentiroso.
nem próximos éramos – é por esta altura que me arrependo de estar morto. se
soubesse que estes cabrões apareciam. tinha evitado morrer a um fim-de-semana –
esta malta não falta ao trabalho para um funeral. mas ao fim-de-semana não tem
para onde ir – mas também são tantos. que alguns destes cromos iria aparecer –
que se fodam todos – bonito é o alinhamento das campas. perfiladas. todas com
mortos. só o nome é que difere – também gosto das lápides. sempre com saudades
eternas da esposa. filhos. noras. netos e restante família – é na restante
família que torço o nariz. a maior parte deles nem conheço. e não tenho saudades
de conhecer – agora. nada posso fazer. estou deitado nesta caixa retangular – talvez
as medidas não tenham sido bem tiradas. estou apertado e sem ar – até os
sapatos me apertam. espero bem não ter uma bolha – a almofada também é uma
merda. alta e dura. está a dar-me cabo do pescoço – não sei como se esqueceram
de trazer a almofada ortopédica – o pano rendado que me cobre. feito de fibras
sintéticas. faz-me comichão na ponta do nariz – se espirrar a culpa não é minha
– estou com medo. esta gentinha é bem capaz de fazer respiração boca a boca – mas
muitos fugiriam com medo que eu soltasse a língua – não quero voltar à vida – aqui
pelo menos tenho silêncio e tranquilidade – um anjo já me disse que depois das
cerimónias fúnebres levam-me para outra dimensão. não sei é o dito céu. mas se
for para o inferno também vou bem. aquilo está cheio de festas e todos os dias
há sunset virado para a terra – a minha última morada está virada a sul. e tem
um eucalipto por perto a guardar-me sombra – quero o sol pelas costas. estou
farto que me cegue. quero ver o futuro. mesmo que seja debaixo da terra – mas
se tivesse pensado bem. tinha pedido para ser cremado. e já não tinha que
aturar os cromos. era uma cerimónia só para a família chegada – o fogo queimaria
todos os vermes e impostores que carreguei durante o tempo em que estive
pré-morto
antes do pó - poesia
desce a ex-vida
desce
desce
descem
lágrimas
sobem
lembranças
descem
as despedidas
sobem
as saudades
descem
os amuos
sobem
as virtudes
descem
as fraquezas
sobem
as forças
todos
os que partem são bons
apenas
a mentira prevalece incólume
desce
desce
descem
sons aflitos
no
buraco. o silêncio pesa. eterno
dentro
da urna. a revolta
reviro-me
reviro-me
ouço
além de um qualquer muro
o
barulho abafado dos que me choram
calado
pela terra imunda que me pisam
grito
grito
cai
a primeira pá de terra
outra
outra
o
buraco está meio cheio. meio vazio
as
flores alinham-se nas mãos da multidão
serão
elas a enfeitar a memória
quero
ser cremado
não
suporto mais terra
o
fogo mata todos os vermes
espaço sideral
nasce vida. derrota a escuridão
as
forças do bem
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a
luz é calor. brilha para lá do olhar
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as
brumas voltam a ganhar
solta-se
o império do mal
a vida gira. como bem sabia galileu
do negro nascem os quadrados
devoram as formas redondas
sem arestas. tornam-se frágeis
no movimento da imaginação
tão pequeno
este espaço sideral
bancos [de] [com] jardim
pintada
de fresco
abre-se
a primavera
bandos
renascem da memória
são
elas
lustrosas
e ditosas
retornam
à luxúria
vivida
no passado
soltam-se
as paixões
alegria
das noites quentes
aos
olhos. o doce amor
na
mente. o infinito eterno
voo
nas asas
o
êxtase
dos
sem-abrigo
sonham
com o partir
mas
o banco...
é
o único amor
ground zero
o relógio
da torre da igreja marcar horas com aquele barulho insuportável é um inferno – o
toque a defunto. ainda me irrita mais – é mesmo necessário anunciar a partida
de alguém? só para não ouvir o sino. preferia que ninguém morresse. ou que morressem
noutra terra – os sinos repicam. para a missa das oito – repicam. para a missa
do meio-dia – repicam. para a missa das quatro – repicam para a missa das oito.
em maio. repicam às vinte e uma para o mês de maria. e não podemos esquecer.
que no dia da ceia. repicam à meia-noite para a missa do galo – que raio é que
a igreja tem tanto para dizer? a minha cabeça vira-se do avesso. só me apetece dar
uma chumbada à torre do sino - um dia destes. monto uma bicicleta e atiro-me
contra a torre do sino - quero fazer um ground zero com um grande monumento à
torre do sino - tenho é medo que o sino me acerte em cheio. azarado como sou.
ainda apanho com o badalo nas trombas
bola de berlim
não sei se por aí faz noite
por cá
olho para dentro de uma bola
de berlim
a lua traz desejos
primitivos
bem queria ser vampiro
mas vivo sozinho
salivo
louco como estou
vou chupar-lhe o creme
a massa
sucumbirá com os primeiros
raios de luz
e eu também
com diabetes
as formigas aparecerão mais
tarde
como lembrança do que se foi
devorando com prazer
agora. pari uma sebenta
agora. essas palavras
tão ordenadas. parecem frágeis
enfatuadas. como fantasmas vagos
que buscam alma. mas falham os detalhes
agora. o vento sopra forte
como katrina. sem ordem. sem sorte
as letras dançam. sem saber seu abecedário
mas seguem. sem rumo. em espiral imaginária
agora. desarrumo os pensamentos
louco como o desejo nos seus momentos
junto os cacos da mente. recompondo-me
mesmo o caos. para no fim. reinvento-me
agora. tudo está sólido. como aço
dos estaleiros de gdansk. pesado no abraço
forjado na força. sem desatino.
seja na guerra ou no destino
agora. ergo um castelo de palavras
em epístolas. de desejos sem amarras
sórdidos. mas com a beleza da noite
festejando o efêmero que em mim açoite
agora. pari uma sebenta
versos que se arrastam. mas tentam
colocando o caos em ordem. em sua essência
transbordando em pura existência
passei um. passei dois. passei três. passei quatro...
passei um
passei dois
passei três
passei quatro
passei cinco
passei seis
passei sete
passei oito
ia já nos duzentos
e…
um verbo minúsculo - atravessar - apareceu
ninguém o tinha chamado
travei… apanhei o verbo despistar
capotei
rebolei
embati na primeira pessoa do verbo morrer
continuei a desenhar figuras geométricas
rectângulo com os ângulos em bronze
apanhei a segunda pessoa
Ia ao lado do às de trunfo
do verbo paralisar
gerou-se uma confusão
apareceu o verbo socorrer. chorar. ajudar.
mutilar.
entre outros. que nada tinham a ver com a
história
a língua portuguesa é assim
dá camões
não tivesse ele apenas um olho