.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

17/06/2010

a morte depois da vida - prosa









silêncio total. a solenidade ainda vive. ainda é urna. a madeira está intacta. encerada. os bronzes polidos. as cordas sedosas e os castiçais perfilados – o momento é como imaginei – as feições são brisas. trazem palavras misturadas. escuto-as com dificuldade e apreendo que algumas trazem tristeza apenas por dentro. outras. por dentro e por fora. são elegantes. nunca imaginei ver palavras elegantes no conteúdo. com linhas. com glamour – ouço-as. sinto-as como melodia. talvez hallelujah do leonard cohen – mas as mais divertidas são as curiosas – afinal morrer não acontece todos os dias. é obrigatório aproveitar – [coitado. afinal de que embarcou?].[também é preciso ter galo]. [foda-se. logo hoje que está tão bom tempo] – mas também há palavras fodidas. e mesmo depois de morto temos que as aturar – estes caralhos não desistem e não descansam nunca a hipocrisia – sabem que é a ultima oportunidade para usarem o veneno e. sem dó. partem para o mais perto do que já foi vida – sentem-se bem por aqui. afinal estão perto do que sempre foram. nunca tiveram vida – rebobinam a matraca atrás e vomitam mais um vez o chorrilho de impostorices – [coitado. tão bom homem]. [uma perda para quem de perto tão bem o conhecia com eu]. [nunca mais serei o mesmo]. [tenho pena é dos filhos]. [éramos tão amigos] – filho da puta de mentiroso! – é nesta altura que me arrependo de estar morto. se soubesse que estes cabrões apareciam tinha evitado morrer a um dia da semana – esta gente não perde fins-de-semana. mas também são tantos que algum filho da puta tinha que aparecer – que se fodam – bonito é o alinhamento das campas perfiladas. parecem todas iguais. parecem. imagino eu. que estou deitado nesta caixa rectangular e estou em crer que as medidas se acertam pelos meus pés – a almofada é uma merda. alta e dura está a dar-me cabo do pescoço. o pano rendado feito de fibras sintéticas faz-me comichão na ponta do nariz. estou com medo de espirrar. esta gente. é bem capaz de começar de novo a fazer-me respiração boca a boca – estúpidos, nem imaginam que não quero voltar para aquela merda – sorrio com o destino. esta tumba está virada a norte. tenho um eucalipto por perto para me fazer sombra. quero o sol pelas costas. estou farto de esperar por ele e agora parece-me que está prestes a juntar-se a esta seita de impostores. acabem com esta merda depressa – levem-me para a cremação. então o fogo queimará todos os vermes e impostores.



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