.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/06/2010

quinta-feira









faltam apenas vinte e quatro horas para saber que a sexta tem sabor a sábado – começo a pensar nas minhas gaivotas. sei que estarão de volta logo pelo fim desse dia. vão trazer todo o mundo nos olhos: as marés. os barcos. e a faina dos homens do mar – nunca percebi se estes homens deixam ficar as mulheres. ou se quando regressam a casa deixam o mar órfão – penso na minha mesa de escrita. começo a imaginar tudo que deixei em aberto com a semana – lembro-me de deixar um arpão a marcar a página de um livro. tinha um poema maldito para mandar a um amigo que me tem tratado como inimigo – esta dor de ver partir um camarada que ainda há pouco tempo era carne da minha carne. é muito doloroso. penso que partiu por causa de uma gaivota de sapato alto. não usa avental. apenas quer colorir um mar que sempre desconheceu. será sempre uma gaivota de falésia. viverá entre uma rocha e o sopro húmido do vento marítimo. não sentirá nunca. aquele prazer de se sentar num rochedo no meio do mar. e vociferar a todas as sereias que as ondas encobrem. nunca saberá ler a estrela polar nas noites de solidão – muitas vezes perdemos gaivotas que tinham um nome dentro de nós. entram para um mar que não é nosso. foram em busca de pedaço de terra prometida – irão também elas andar quarenta anos perdidas como moisés – mas são gaivotas também – e é para estas gaivotas que continuarei a fazer desenhos no areal – um dia. vão querer saber que eu estou por aqui a contar estrelas-do-mar – mais ao lado. vejo um pisa-papéis – dentro. tem uma imagem de um lugar que não sei onde fica. parece-me uma cabana de pescador no meio de uma montanha – talvez seja a casa de um homem ferido do mar. um homem sem gaivotas – tudo parece perfeito demais para não ter mar nem gaivotas – arrasto a imagem para perto do meu olhar. queria tanto contar-lhe um segredo de um amor que perdi quando ainda aprendia as letras. perdi a criança que vivia dentro de mim – nesse dia. lembro-me de ficar sozinho. sentei-me na beira de uma esperança e tirei do alforge do conhecimento um pão com marmelada embrulhado num pano feito de futuro. a duas agulhas tricotado pelas mãos da minha mãe – tinha duas inicias a ouro. SR. foram as letras mais bonitas que vi enquanto crescia. erguiam-se dum pano que poderia ser a camisa do meu pai. ou a calças rasgadas de uma tarde de futebol do meu irmão – sei que eram enormes. e sempre que as levava ao peito ficava com a certeza de que me guiariam pelo mundo que desconhecia – mesmo sozinho. eu tinha aquelas letras para me defender de todas as brisas que me empurrassem para norte – deixei cair duas lágrimas que escolhi. eram as melhores. as mais dolorosas. mas também as mais límpidas e genuínas – cravei o retalho no peito a fogo e com um anzol de pescador. cosi em cruz as linhas da minha vida – nesta tábua. tenho ainda um pilha de livros. enorme. vivem lá autores que nunca poderei ler. escrevem coisas felizes. coisas que eu nunca irei saber. mas a pilha continua a crescer. tapa-me a janela que me mostra o passado – é uma janela a norte. nunca por lá vi uma gaivota. mas foi lá que nasci.



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